NOVOCINE

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CABRA CEGA 2021, PT, 16 min


um filme de Tomás Paula Marques

Gabi acredita na sua capacidade de agir perante momentos de injustiça. Ao descobrir que o seu irmão, Daniel, está a ser intimidado por um grupo de rapazes da vizinhança, tenta vingá-lo, apercebendo-se de que talvez estejam a ser testados por fantasmas do passado.



Texto por Pê Feijó

Talvez a Luciana tenha razão quando diz que eu devia prestar mais atenção ao que está a acontecer à minha volta.

Há um par de maneiras de fazer História. Como género literário, marca-a um tom sério e sóbrio, investido em des-cobrir ou re-velar o que o tempo tapou. Cronos que devora seus infantes. E é tarefa da História, protegida pela própria Verdade — como Goya tão bem pintou na sua alegoria –, recuperar e proteger o passado.
Mas a História não consegue evitar, nem mesmo na sua faceta mais altiva, a estória. Para além de factos atados e desatados, a História conta- se.
Há coisas, contudo, que a História não pode contar, não pode fazer ou deixar existir. Episódios sem arquivos, sem registo. Momentos e movimentos de personagens que o mundo proibiu de deixar rastro, e que o tempo não marcou com glória ou sequer com desdém. Histórias que, contadas desde aqui — e são sempre contadas desde aqui — teriam de ser feitas de paisagens, gentes e gestos impossíveis.
Quando se avista o horizonte da História, o limite dos seus alcances, há uma escolha a fazer. Uma possibilidade é a retracção da disciplina. As fronteiras da validade do método e da verdade são reiteradas e patrulhadas, e as estórias indesejadas/indesejáveis expulsas de volta para onde vieram, para, imagina-se, o reino da fantasia.
A alternativa — abundante, excedente — é o da fabulação. A fabulação sabe que tudo é estória, e face aos limites da História, confrontada com o crepúsculo que lhe marca o horizonte, não se encolhe.
— Voa.
De asas ou vassoura.
— Voa.
A coruja de Hecate.
— Voa.

A fabulação não tenta restaurar o que Cronos devorou (— mesmo o titã nos encontrou corpos resistentes). Em vez disso, recebe de braços abertos, no seu colo, o que ele deixou para trás, as gorduras que achou demais e as peles de menos, as cartilagens que não pôde mascar, os ossos com que palitou os dentes, e entrega-se a uma paleografia fantástica não menos verdadeira que qualquer outra. Ela sabe que o arquivo é um traço, que é um traço insubstituível. Mas sabe também que o arquivo não é mais as palavras de um livro que o pó que o cobre, que a poeira pousada no chão e suspensa no ar.
— E a poeira, manas, são fantasmas.
A poeira, manas, é a angústia dela, que ainda assombra a cidade.

Há um par de maneiras de fazer história. As degeneradas, infâmes e manchinhas conhecem-nas bem. Sabem da poética, cantada ou cacofónica, com que recebem no colo o que ainda não tem termo. Sabem da realness com que a história se veste séria, fato e gravata, com que se enfeita de facto, com que se factualiza. E sabem da necromancia, como trazer à vida a semi-presença, a ausência-presente, de quem não pôde ter nome, um passado imprescindível e irrecuperável. De quem não pode ter nome, um presente irrecuperável e imprescindível.

Juntas no aquelarre repetido a que chamam vida — a que chamam sobrevivência —, partilham contos, risas e as auto-defesas contra os autos-de-fé. Escutam as palavras da Luciana. Prestam atenção aos gestos e às conversas. Aos feedbacks que as cortam. Ao silêncio.
Juntas na noite que é o nosso escudo e a nossa jaula, o nosso manto e a nossa ferida, sabem ser as netas das bruxas que eles não conseguiram queimar.
Mas dos ventres ouvem ecos de algo mais importante ainda. É que são também quem se ajunta uma e outra vez, antes, depois e agora. Quem se junta por mais que as tenham reduzido a cacos e cinzas, e porque lhes corre nas veias o sangue impuro que outros fizeram derramar. É que são também as netas das bruxas sem linhagem ou descendência, essas que não puderam ter filhas que nos tivessem.
Somos as netas das bruxas que queimaram na fogueira.

Há histórias impossíveis. São as que se fazem antes de serem passado. Quem não tem direito ao tempo, leva nos dedos a possibilidade de as escrever.
É o jogo da Cabra Cega.



Numa história era uma vez 
Pedi um teste de gravidez 

E o meu pack de 6 
E a gota de suor que te faz gay 

E o horóscopo quando calha 
E o verniz quando falhas 

Desce até à Filipe da Mata 
Apanha o táxi e please baza 

Se eu não me vim, não me leves a mal 
Nem o Tom Cruise é sempre sensacional 

Não-bicha, não-macho, olha no que eu virei 
Sou o teu favorito, sou o teu panelei 

Porque faca por faca, porque mana por mana 
Tipo rouba-lhe a tiara, tipo espeta-lhe a catana 

Panelei punx, panelei punx



realização TOMÁS PAULA MARQUES com FRANCISCA SILVA, GASPAR MENEZES, ELUISA MUAMBI, FRANCISCA RIBEIRO, INÊS CARVALHAL, TERESA SERRA NUNES, RODRIGO VAIAPRAIA, JOÃO ABREU, ANA FARINHA, INÊS PINHEIRO TORRES, INÊS BRITES, PEDRO COELHO, RICARDO PINTO, VASCO SEQUEIRA, ANDRÉ MARQUES, MIGUEL AMORIM, RODRIGO TOMÁS, VASCO BARROSO e CÃO CRIXUS DO VALE DA LOBAGUEIRA argumento INÊS PINHEIRO TORRES, MARCELO TAVARES, RODRIGO VAIAPRAIA, TOMÁS PAULA MARQUES imagem MANUEL PINHO BRAGA assistência de imagem ANA RAMOS maquinistas ANDRÉ CARVALHO, EDUARDO CARVALHO som MARCELO TAVARES assistência de som VICENTE MOLDER montagem CLARA JOST, JORGE JÁCOME produção CRISTIANA CRUZ FORTE, PATRÍCIA SILVA, TOMÁS PAULA MARQUES produção executiva MARIA INÊS GONÇALVES assistência de produção NEVENA DESIVOJEVIC assistência de realização JOSÉ RITO anotação ANDRÉ SILVA SANTOS direcção de arte LEONOR COELHO assistência de arte CAROLINA LOBATO mistura de som PEDRO GÓIS maquilhagem SOFIA FRAZÃO cabelo MARIA CASTELLO BRANCO correcção de cor MARTÍ SOMOZA figuração FRANCISCA TADEU, ILUNDI DURÃO DE MENEZES, JÉSSICA ROÇAS, JOÃO AYTON, TATA GARRUCHO, VICENTE COELHO