NOVOCINE

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VERNIZ 2018, PT, 14 min


um filme de Clara Jost

Uma viagem de autocarro rítmica e sem protagonistas. O tempo dilatado a cada plano permite ao espectador que observe e desvele as interacções entre os passageiros e, quiçá, que imagine os possíveis finais de cada viagem.



Novocine: Verniz foi filmado em 2018 enquanto estudavas na Escola Superior de Teatro e Cinema em Lisboa. O filme acompanha uma viagem de autocarro ao longo de uma noite chuvosa, pessoas entram e saem ao longo das várias paragens. O que é que te levou a querer fazer este filme?

Clara Jost: Verniz é o meu filme final de licenciatura da ESTC, em que existem várias regras. Havia a coisa de ter ser uma ficção e está tudo muito pré-definido sobre como é que se têm de fazer estes filmes. Na verdade, este filme já foi feito há algum tempo por isso não me lembro muito bem porque é que o fiz (risos). Acho que sempre fui um pouco filosófica, que a minha cena é filosófica. Eu andava a pensar sobre como é que as pessoas desconhecidas se comportam quando estão ao lado umas das outras, fisicamente próximas — veio um bocado daí. Lembro-me que no início não era suposto o filme se passar todo dentro de um autocarro, mas depois, como a cena do autocarro era a mais fixe do argumento, decidi concentrar-me só aí.

NC: É um filme observacional, parece que houve algum improviso. Foi assim?

CJ: Por acaso não foi esse o caso, é engraçado. Estava tudo planeado meticulosamente. Literalmente! - até o tempo que cada plano deveria durar já estava pré-estabelecido.

NC: Acabas por nunca filmar o condutor do autocarro — ouvimos a sua voz mas nunca o vemos. O ponto de vista da câmara é como a de outro passageiro, também abstraído da ideia do condutor?

CJ: Talvez. (risos) Enquanto filmava não sabia, mas na montagem percebi finalmente qual era o ponto de vista da câmara. Está ligado à música do filme, que tem uma sonoridade quase extraterrestre, e para mim o ponto de vista da câmara é como se fosse o de um extraterrestre que chegou à terra e caiu num autocarro. E seriam nestas coisas que o extraterrestre provavelmente se iria interessar.

NV: O elenco do filme é composto por actores e não actores. Houve uma lógica por detrás da decisão do casting para estas personagens?

CJ: Depende das pessoas. A personagem do José Lopes, por exemplo, é muito inspirada nele próprio. Ele era esta pessoa que começava mesmo a falar com as pessoas aleatoriamente, sem filtro. Eu queria muito que houvesse alguém que entrasse naquele autocarro que fosse diferente das outras pessoas, e que quebrasse este comportamento fechado dos transportes públicos.

NC: A personagem dele tem mesmo uma presença diferente, até talvez oracular.

CJ: Em relação às outras pessoas… Por exemplo, a senhora mais velha é a minha avó. O António Júlio Duarte… é o António Júlio Duarte. O Dennis (rapaz que adormece) estava a estudar teatro na Escola, e a Roxanna também, por exemplo.

NC: Porquê “Verniz”? A tradução em inglês Glaze” pode ser interpretada como o material com que se acabam algumas cerâmicas, de forma a conceder-lhes um efeito brilhante, um acabamento envidraçado.

CJ: O título vem de um conceito que eu decidi inventar, e a que chamei de verniz. O filme é sobre este termo — quando as pessoas estão fisicamente perto de uma pessoa que não conhecem, como acontece num autocarro, meio que parece que se cria uma espécie de bolha à volta da pessoa, como um verniz à nossa volta, que nos protege das outras pessoas. O momento do cabelo acho que é o mais óbvio deste conceito. O cabelo está a tocar na mochila dele, é uma sensação estranha de proximidade com uma pessoa que não tem nada a ver.

NC: Também se sente isso na situação da senhora que se senta mesmo ao lado do homem com as folhas.

CJ: Sim, e aí ela toca-lhe muito ligeiramente e mesmo assim diz “ai, desculpe!”. Ela não precisaria de pedir desculpa, mas essa coisa do verniz fá-la dizer isso, segundo o pensamento que eu tinha muito presente na altura.

NC: Quando fizeste o filme, tinhas alguma referência particular de ficções documentais ou filmes fechados num só espaço?

CJ: Na altura estava muito interessada no Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles da Chantal Akerman. Também andava a ver muito filmes do Sharunas Bartas. Nessa altura isso era o que me estava mais a inspirar, coisas muito minimalistas — a criação de um arco narrativo a partir de quase nada.


NC: Fez-me até mais pensar pensar no News From Home”, também da Chantal.

CJ: Acabei de o ver ontem à noite. (risos) Na altura ainda não tinha visto o News from Home, mas sinto coisas semelhantes no Jeanne Dielman, no sentido em que nós, enquanto espectadores, ficamos surpreendidos com alguns momentos, como se tivesse acontecido uma coisa enorme mas, na realidade, ela só se esqueceu de fechar a tampa de uma garrafa. Eu acho que isso é muito engraçado e até importante, fazer uma coisa muito pequena parecer grande. Isso é um bocado o que eu estou a fazer agora, é verdade.


NC: Verniz usa como motivo circular o tema musical Pot Au Feu da compositora Delia Derbyshire. O próprio tema, com diferentes variações, é como se contasse diferentes histórias a diferentes ritmos. Foste para a rodagem já com a música na cabeça?

CJ: Eu acho que a música foi decidida na montagem, mas claramente já andava a ouvir aquilo e sinto que adiciona essa perspectiva extraterrestre de que falava. Dá-lhe logo um tom, e faz-me ver o filme de uma maneira específica desde o início.

NC: Estiveste na escola de cinema, fizeste o “Meine Liebe” (filmado em 2016 e vencedor da Competição Nacional de Curtas-Metragens do IndieLisboa 2020) e “Verniz”. São dois filmes muito diferentes mas existe esta ligação do minimalismo — o espectador tem de estar mesmo atento a estes detalhes, aos pequenos auges. Continuas a explorar esta ideia de minimalismo no que estás a fazer agora?

CJ: Entretanto mudei-me para a Bélgica e fiz um mestrado na KASK, em Ghent, onde pude fazer um filme no qual experimentei um processo diferente e um tema também novo para mim. Gostei muito de ter tido esta experiência mas sinto que o tema foi um bocado ao lado daquilo que eu quero continuar a explorar. Mas foi fixe para perceber que não era aquilo que eu devia estar a fazer. Isto porque o filme é sobre a intimidade de pessoas e acho que isso não é bem o que me sinto mais confortável a fazer. Também não sei se película é muito a minha cena, gostei mas não sou muito manual como outras pessoas que vejo à minha volta. O que gostei mais nesse filme foi processo que chamo de colecta: não usar argumento, planear o mínimo possível, filmar espaçadamente. Coleccionar momentos para depois lhes dar sentido na montagem. Isto faz imenso sentido para mim, porque acho que o acaso é muito importante e pode gerar coisas mais surpreendentes do que o planeamento de tudo. Um dos filmes que estou agora a fazer chama-se Felicidade numa panela e é sobre uma panela, o que de alguma forma faz muito mais sentido para mim. Acho que faz sentido procurar o que devo fazer, aquilo que faço melhor ou que me interessa mais. Encontrar a minha especificidade. Em relação aos filmes que fiz anteriormente, o Verniz, o Meine Liebe, eu sinto é que gosto muito de pegar em coisas muito pequenas e torná-las gigantes. Este filme da panela fala literalmente sobre pré-história e pós-apocalipse, e estou muito contente com isso.


NC: Se largaste o guião tradicional, qual é a tua forma de organizar ideias. Tens uma espécie de diário gráfico ou é algo mais digital, através da internet?

CJ: Existe um método que aprendi na KASK e que adoptei para mim. Agora tenho vários tumblrs privados onde vou pondo tudo sobre cada filme, como um blog. Dá-me imenso jeito porque não preciso de um caderno, se estou num bar e alguém me fala de alguma coisa, posso logo escrevê-lo no telemóvel e para além disso, permite-me colocar todo o tipo de coisas — música, texto, fotografias… Tenho estado também muito inspirada pelas outras artes — sinto que o cinema é uma arte em que se planeia tudo, que não quer imprevistos… Isso para mim não é bem conjugável com fazer arte.


“So a film must not be the pure and simple execution of a plan, even a plan that is personal to you, and even less a plan that is someone else’s. [...] For me, improvisation is fundamental to the creation of cinema.”
- 1966. Bresson, Bresson on Bresson, 286-287

“La faculté de bien me servir de mes moyens diminue lorsque leur nombre augmente.” Bresson, Notes sur le cinematographe


Clara Jost terminou a sua tese de mestrado em Agosto de 2022, pela KASK, em Gent. Se quiserem ler a sua tese “Au hasard, Cinema: Thoughts on the location of cinema in space and time”, podem escrever-lhe para clarajost.film@gmail.com




realização CLARA JOST com ANTÓNIO JÚLIO DUARTE, DENNIS CORREIA, GABRIEL MARGARIDA PAIS, JOSÉ LOPES, MARIANNE HARLÉ, MARÍLIA VILLAVERDE CABRAL, ROXANA LUGOJAN e SIMÃO GODINHO argumento BRUNO TEIXEIRA direcção de produção RUI FERREIRA direcção de fotografia ROSA VALE C ARDOSO direcção de arte RAFAEL DO CARMO AFONSO, ANTÓNIO RAMOS guarda-roupa ERICA SEIDI maquilhagem e cabelos OAN MOONENS direcção de som MARCELO TAVARES montagem ELISA CAMPOS montagem e mistura de som MARCELO TAVARES colorista DANIEL NICOLAU