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A ILHA 2022. PT. 37 min
um filme de Mónica de Miranda
Após 500 anos de presença africana em Portugal, os negros refugiam-se na criação utópica de A Ilha. Um lugar situado no espaço entre a ficção e a realidade, onde se reúnem as possibilidades de reescrever histórias e pensar futuros através das personagens e seus percursos. A mulher que escapa às memórias do passado confrontando os seus algozes. O arqueólogo que investiga a memória para que não se repitam os mesmos erros na ilha. O capitalista que reflecte sobre como se tornou no opressor. As crianças que transmitem energia a todos as outras personagens.
Após 500 anos de presença africana em Portugal, os negros refugiam-se na criação utópica de A Ilha. Um lugar situado no espaço entre a ficção e a realidade, onde se reúnem as possibilidades de reescrever histórias e pensar futuros através das personagens e seus percursos. A mulher que escapa às memórias do passado confrontando os seus algozes. O arqueólogo que investiga a memória para que não se repitam os mesmos erros na ilha. O capitalista que reflecte sobre como se tornou no opressor. As crianças que transmitem energia a todos as outras personagens.
NOVOCINE: Este filme é muito arquitectónico nas suas formas e enquadramentos, embora se passe, na sua maioria, pela natureza entre as pedras e água, como se criasse uma cidade de rochas. Era esta uma das ideias da planificação?
Mónica de Miranda: Tanto a A Ilha, quanto muitos dos meus trabalhos anteriores, têm uma ligação muito forte com a arquitetura. Esta Ilha trata-se de um espaço utópico, onde a paisagem compõe a própria arquitetura.
No meu trabalho artístico, considero as rochas, o solo, a água, e outras matérias elementares, como repositórios orgânicos do tempo geológico e de memórias incorporadas, onde os traumas ancestrais e ecológicos ligados ao colonialismo continuam a desenrolar-se.
Nesta obra, a praia torna-se um lugar onde as marés vão e vêm, como espaço entre a terra firme e os estados líquidos do mundo: os muitos rios e águas que nos rodeiam. Aqui estes dois elementos comunicam, sendo a água um elemento através do qual ocorreram todos os fluxos do comércio e da escravatura, mas também os fluxos da matéria orgânica e emocional.
No meu trabalho, desenvolvo em diversos aspetos a noção de ecologias do cuidado. Lido com paisagens e a ideia de regeneração - no sentido de estabelecer uma relação entre o corpo humano e o corpo natural, através da qual as histórias são compreendidas.
Por exemplo, na série Panorama (2017), explorei as paisagens arquitetónicas coloniais de Angola e a forma como foram recuperadas pelos exuberantes terrenos naturais. Um outro lado do genocídio na história colonial é o epistemicídio, em que a ecologia de saberes que as várias terras da Terra detêm foi suprimida através de uma monocultura do conhecimento científico eurocêntrica. A minha prática está enraizada nesta noção de recuperação e cuidado, com histórias e memórias perdidas, que ainda estão materialmente presentes através de corpos e paisagens.
NC: O filme estabelece uma analogia entre o macro e o micro, entre o grande pedregulho que é a Ilha e as pequenas pedras que a preenchem e com as quais as personagens interagem. O que podes nos dizer sobre esta ligação entre as diferentes formações rochosas?
MM: A Ilha surge no meu trabalho como uma metáfora para questionar noções limitadas de realidade e verdade eurocentradas. Como um lugar para imaginar caminhos alternativos. As ilhas são pontos de intersecção de várias culturas, de trânsito e aparecem no imaginário coletivo desde a antiguidade como locais de projeção, de renascimento, ligados à cosmogonia de origem e à imagem ideal do cosmos. Podemos ver isso na conceptualização de Gilles Deleuze da ilha e da água circundante como uma condição material para novos começos, uma espécie de núcleo para o segundo nascimento após uma catástrofe. No entanto, a Ilha é também um espaço ambíguo e intermédio, onde podemos desvendar a experiência diaspórica da migração constante e onde a nossa imaginação se liberta das narrativas hegemónicas, para construir novos caminhos para o futuro. Simultaneamente, esta ilha metafórica está também historicamente enraizada na presença das comunidades históricas reais que ali se estabeleceram. É a partir deste lugar de intersecção entre estas diferentes escalas espaciotemporais - entre passado, presente e futuro - que A Ilha emerge como um lugar de refúgio e de imaginação regeneradora.
NC:O que nos podes contar sobre o trabalho com os actores? Estiveram envolvidos com a escrita do argumento?
MM: O guião foi desenvolvido através do próprio local. Na primeira vez em que filmámos houve muito poucos ensaios prévios e foi uma ligação espontânea com o local onde estávamos. Algumas decisões de filmagem foram pré-planeadas, mas estávamos sobretudo a responder ao local - o guião era uma orientação e a equipa desempenhou um papel fundamental na formação da narrativa final, o que penso que também contribui para a intimidade e os aspetos emotivo e sensorial. Deixar que cada ator trouxesse a sua própria ligação ao texto, as suas próprias experiências de vida para a encenação, criou ligações profundas, que contribuíram para os temas e questões trazidos pela narrativa. Houve uma forma espontânea de dirigir o elenco, sem ensaios, permitindo um fluxo em que a equipa se ajustava a cada situação. Isso, penso eu, moldou uma forma mais íntima e incorporada de fazer cinema, que também emprego em outros trabalhos cinematográficos, como Path to the Stars (2022) e Red Horizon (2018). Em relação à formação das personagens, há o complexo processo de individualização a que me refiro através do meu trabalho, de um ponto de vista feminista negro e diaspórico, daí a perspetiva cinematográfica lenta, contemplativa, porém fragmentada.
Isabel Zuaa é a personagem principal e o centro do filme. É uma aclamada atriz, artista multidisciplinar e performer. É portuguesa, com múltiplas origens geográficas - a sua mãe é angolana e o pai guineense. Zuaa é uma mulher de múltiplas dimensões, é mãe, uma criadora fundamental, representando uma multiplicidade de papéis, do feminino ao masculino, do cavaleiro ao amante. Ela guarda muitas histórias, tempos e locais dentro de si, e guarda a complexidade de pertencer a diferentes locais, e compreende a relação entre a memória, o "agora" e o tempo vindouro. Zuua foi uma inspiração fundamental para a realização do filme: ela não só atua, como também vive através das histórias que conta e encena.
NC: A banda sonora permanece constantemente num tom hipnótico que, durante os deambulares das personagens, vai-se progressivamente manifestando de uma maneira intensa e cada vez mais cavernosa até à sua eventual resolução - o que nos podes dizer sobre o desenho sonoro deste filme?
MM: O som tem desempenhado um papel muito importante no meu trabalho. Exploro frequentemente a relação entre a imagem em movimento e o som. Este tem sido um elemento essencial na minha prática para construir camadas ao contar histórias. Junto frequentemente texto, som e movimento para criar um espaço mais etéreo. Os próprios sons da natureza fazem parte do desenho sonoro deste filme – a água, os pássaros, o vento. Todos os sons contribuem para a criação deste lugar idílico.
NC: Esta Ilha é um espaço fictício, construído através de uma memória colectiva ou é baseado numa ideia concreta de um espaço real?
MM: Em termos históricos, enquanto conceptualizava o projeto, estava a pesquisar a presença negra em Portugal e li sobre uma comunidade afro-diaspórica que se formou na margem do rio Sado, na região do Alentejo, onde entre o final do século XV e o início do século XVI, muitos africanos foram enviados para trabalhar nas salinas, onde mais tarde se fixaram. Esta comunidade esquecida era pejorativamente designada por "Pretos do Sado", e a sua povoação era conhecida por "Ilha dos Negros". Foi uma combinação destes fatores que me levou a criar este corpo de trabalho - desde a minha experiência pessoal, à investigação sociológica em que estava imersa na altura.
Criei uma ilha imaginária - um lugar onde os fantasmas desta comunidade e as suas histórias se cruzam com o sentido geológico do tempo, estabelecendo um paralelo entre o domínio do ser humano sobre si mesmo e o extrativismo predatório da natureza. Daí a ideia da Ilha como um lugar utópico para onde podemos fugir, um espaço que contém simbolismos recorrentes de renascimento e renovação, onde se podem projetar novos futuros
realização MÓNICA DE MIRANDA argumento MÓNICA DE MIRANDA, YARA NAKAHANDA MONTEIRO com ISABÉL ZUUA, MAURO HERMÍNIO, ANILSON EUGÉNIO e NÁDIA YRACEMA imagem RUI SÉRGIO AFONSO montagem MIGUEL TAVARES som FILIPE RIDOLFI apoio ao desenvolvimento AUTOGRAPH e ARTS COUNCIL OF ENGLAND
Mónica de Miranda: Tanto a A Ilha, quanto muitos dos meus trabalhos anteriores, têm uma ligação muito forte com a arquitetura. Esta Ilha trata-se de um espaço utópico, onde a paisagem compõe a própria arquitetura.
No meu trabalho artístico, considero as rochas, o solo, a água, e outras matérias elementares, como repositórios orgânicos do tempo geológico e de memórias incorporadas, onde os traumas ancestrais e ecológicos ligados ao colonialismo continuam a desenrolar-se.
Nesta obra, a praia torna-se um lugar onde as marés vão e vêm, como espaço entre a terra firme e os estados líquidos do mundo: os muitos rios e águas que nos rodeiam. Aqui estes dois elementos comunicam, sendo a água um elemento através do qual ocorreram todos os fluxos do comércio e da escravatura, mas também os fluxos da matéria orgânica e emocional.
No meu trabalho, desenvolvo em diversos aspetos a noção de ecologias do cuidado. Lido com paisagens e a ideia de regeneração - no sentido de estabelecer uma relação entre o corpo humano e o corpo natural, através da qual as histórias são compreendidas.
Por exemplo, na série Panorama (2017), explorei as paisagens arquitetónicas coloniais de Angola e a forma como foram recuperadas pelos exuberantes terrenos naturais. Um outro lado do genocídio na história colonial é o epistemicídio, em que a ecologia de saberes que as várias terras da Terra detêm foi suprimida através de uma monocultura do conhecimento científico eurocêntrica. A minha prática está enraizada nesta noção de recuperação e cuidado, com histórias e memórias perdidas, que ainda estão materialmente presentes através de corpos e paisagens.
NC: O filme estabelece uma analogia entre o macro e o micro, entre o grande pedregulho que é a Ilha e as pequenas pedras que a preenchem e com as quais as personagens interagem. O que podes nos dizer sobre esta ligação entre as diferentes formações rochosas?
MM: A Ilha surge no meu trabalho como uma metáfora para questionar noções limitadas de realidade e verdade eurocentradas. Como um lugar para imaginar caminhos alternativos. As ilhas são pontos de intersecção de várias culturas, de trânsito e aparecem no imaginário coletivo desde a antiguidade como locais de projeção, de renascimento, ligados à cosmogonia de origem e à imagem ideal do cosmos. Podemos ver isso na conceptualização de Gilles Deleuze da ilha e da água circundante como uma condição material para novos começos, uma espécie de núcleo para o segundo nascimento após uma catástrofe. No entanto, a Ilha é também um espaço ambíguo e intermédio, onde podemos desvendar a experiência diaspórica da migração constante e onde a nossa imaginação se liberta das narrativas hegemónicas, para construir novos caminhos para o futuro. Simultaneamente, esta ilha metafórica está também historicamente enraizada na presença das comunidades históricas reais que ali se estabeleceram. É a partir deste lugar de intersecção entre estas diferentes escalas espaciotemporais - entre passado, presente e futuro - que A Ilha emerge como um lugar de refúgio e de imaginação regeneradora.
NC:O que nos podes contar sobre o trabalho com os actores? Estiveram envolvidos com a escrita do argumento?
MM: O guião foi desenvolvido através do próprio local. Na primeira vez em que filmámos houve muito poucos ensaios prévios e foi uma ligação espontânea com o local onde estávamos. Algumas decisões de filmagem foram pré-planeadas, mas estávamos sobretudo a responder ao local - o guião era uma orientação e a equipa desempenhou um papel fundamental na formação da narrativa final, o que penso que também contribui para a intimidade e os aspetos emotivo e sensorial. Deixar que cada ator trouxesse a sua própria ligação ao texto, as suas próprias experiências de vida para a encenação, criou ligações profundas, que contribuíram para os temas e questões trazidos pela narrativa. Houve uma forma espontânea de dirigir o elenco, sem ensaios, permitindo um fluxo em que a equipa se ajustava a cada situação. Isso, penso eu, moldou uma forma mais íntima e incorporada de fazer cinema, que também emprego em outros trabalhos cinematográficos, como Path to the Stars (2022) e Red Horizon (2018). Em relação à formação das personagens, há o complexo processo de individualização a que me refiro através do meu trabalho, de um ponto de vista feminista negro e diaspórico, daí a perspetiva cinematográfica lenta, contemplativa, porém fragmentada.
Isabel Zuaa é a personagem principal e o centro do filme. É uma aclamada atriz, artista multidisciplinar e performer. É portuguesa, com múltiplas origens geográficas - a sua mãe é angolana e o pai guineense. Zuaa é uma mulher de múltiplas dimensões, é mãe, uma criadora fundamental, representando uma multiplicidade de papéis, do feminino ao masculino, do cavaleiro ao amante. Ela guarda muitas histórias, tempos e locais dentro de si, e guarda a complexidade de pertencer a diferentes locais, e compreende a relação entre a memória, o "agora" e o tempo vindouro. Zuua foi uma inspiração fundamental para a realização do filme: ela não só atua, como também vive através das histórias que conta e encena.
NC: A banda sonora permanece constantemente num tom hipnótico que, durante os deambulares das personagens, vai-se progressivamente manifestando de uma maneira intensa e cada vez mais cavernosa até à sua eventual resolução - o que nos podes dizer sobre o desenho sonoro deste filme?
MM: O som tem desempenhado um papel muito importante no meu trabalho. Exploro frequentemente a relação entre a imagem em movimento e o som. Este tem sido um elemento essencial na minha prática para construir camadas ao contar histórias. Junto frequentemente texto, som e movimento para criar um espaço mais etéreo. Os próprios sons da natureza fazem parte do desenho sonoro deste filme – a água, os pássaros, o vento. Todos os sons contribuem para a criação deste lugar idílico.
NC: Esta Ilha é um espaço fictício, construído através de uma memória colectiva ou é baseado numa ideia concreta de um espaço real?
MM: Em termos históricos, enquanto conceptualizava o projeto, estava a pesquisar a presença negra em Portugal e li sobre uma comunidade afro-diaspórica que se formou na margem do rio Sado, na região do Alentejo, onde entre o final do século XV e o início do século XVI, muitos africanos foram enviados para trabalhar nas salinas, onde mais tarde se fixaram. Esta comunidade esquecida era pejorativamente designada por "Pretos do Sado", e a sua povoação era conhecida por "Ilha dos Negros". Foi uma combinação destes fatores que me levou a criar este corpo de trabalho - desde a minha experiência pessoal, à investigação sociológica em que estava imersa na altura.
Criei uma ilha imaginária - um lugar onde os fantasmas desta comunidade e as suas histórias se cruzam com o sentido geológico do tempo, estabelecendo um paralelo entre o domínio do ser humano sobre si mesmo e o extrativismo predatório da natureza. Daí a ideia da Ilha como um lugar utópico para onde podemos fugir, um espaço que contém simbolismos recorrentes de renascimento e renovação, onde se podem projetar novos futuros
realização MÓNICA DE MIRANDA argumento MÓNICA DE MIRANDA, YARA NAKAHANDA MONTEIRO com ISABÉL ZUUA, MAURO HERMÍNIO, ANILSON EUGÉNIO e NÁDIA YRACEMA imagem RUI SÉRGIO AFONSO montagem MIGUEL TAVARES som FILIPE RIDOLFI apoio ao desenvolvimento AUTOGRAPH e ARTS COUNCIL OF ENGLAND