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ALBUFEIRA 1968. PT. 28min
um filme de António de Macedo
Curta-metragem dos anos 1960, uma produção de Francisco de Castro, Albufeira é um filme de cariz promocional do turismo na cidade algarvia (tal como Lisboa, Jardim da Europa), mostrando, contudo, a marca autoral e experimental de António Macedo, um dos fundadores do Cinema Novo português, sempre atreito a fugir aos cânones de produção.
Curta-metragem dos anos 1960, uma produção de Francisco de Castro, Albufeira é um filme de cariz promocional do turismo na cidade algarvia (tal como Lisboa, Jardim da Europa), mostrando, contudo, a marca autoral e experimental de António Macedo, um dos fundadores do Cinema Novo português, sempre atreito a fugir aos cânones de produção.
texto por Tiago Bartolomeu Costa
Albufeira, ver para lá do mar
O mar tem uma presença de relevo no cinema de António de Macedo, do mesmo modo que as encomendas às quais respondeu, produzindo anúncios que inventavam um modo de comunicação distinto, que fazem de ALBUFEIRA uma singular abordagem social, política e cultural muito para lá do cinema enquanto mecanismo de expressão.
Produzido por Francisco de Castro, o filme é uma resposta à entidade responsável pela promoção turística da região, e a resposta de António de Macedo não podia ser mais desarmante e desassombrada. O filme simula a visita de uma jornalista inglesa, acompanhada de duas amigas, responsável pela produção de uma reportagem sobre as singularidades do Algarve e, em particular, Albufeira, lugar mágico e encantatório para a comunidade britânica que, então, começava a instalar-se.
O filme é um exercício de observação e denúncia derrisória de um país que se pretendia aberto, mas se definia a partir do estereótipo cultural, muito em particular, no contraste exposto entre as figuras livres das três amigas, e as representações femininas, sujeitas a um empobrecimento cultural, estético e social, de certo modo distante do que eram as (poucas) conquistas sociais conseguidas pelas mulheres em Portugal no final da década de 1960. Talvez não fosse essa a intenção explícita do realizador mas, a esta distância, ALBUFEIRA surge como um importante documento sobre a condição da mulher portuguesa, no rude oposto da figura feminina liberal e livre que as três inglesas representam.
O mar, escreve-se acima, tem, de facto, uma presença no percurso de António de Macedo. A PROMESSA (1972), a partir da peça de Bernardo Santareno, é exemplo maior dessa relação, e mais ainda da opressão a que as mulheres eram sujeitas. Mas antes disso, com VERÃO COINCIDENTE, outra encomenda institucional, no caso para a Central de Cervejas, e onde ao poema de Maria Teresa Horta, lido por Carmen Dolores, se justapõem imagens de trabalho, de praia, de lazer, de força e de vidas regidas pelo tempo solar. São formas, bastante eficazes, de desmontar uma ideia de naturalidade na identidade nacional e através da qual – tal como, mais tarde, na sua única encenação para teatro, O MARINHEIRO (Teatro Nacional D. Maria II, 1983) – o mar haverá de ser hipótese de reflexão profunda sobre a ilusão de um coletivo.
Em ALBUFEIRA, esse coletivo é comentado com escárnio e malícia, numa montagem sinuosa que, aliada à composição musical e ao discurso, se oferece, com evidente deleite, à denúncia do paradoxo e do ridículo. Os intensos planos aéreos, as íntimas sequências de festa e de luxo, a exposição de um Algarve fabricado, que esconde a miséria social atrás das danças tradicionais, que promete a harmonia antes do caos urbanístico, que afasta a falha para sublinhar a virtude de um país de servidores, é campo vasto de intervenção fílmica, sempre do lado das protagonistas. É um filme feito a partir de um olhar livre, que liberta, ao mesmo tempo, o espetador da visão imposta por uma política de espírito redentora, porque observa, no alibi do olhar estrangeiro, a razão do erro, da perda e do limite de um Portugal todo ele ficcionado.
ALBUFEIRA é, em suma, um filme essencial para revelar como o cinema inventou formas de se colocar entre a verdade e a perceção. E, ainda, fingir que estava a vender o Algarve. Veríamos os erros conscientemente premonitórios, poucos ano depois.
O filme foi digitalizado pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito do projeto FILMar, com o apoio do Mecanismo Financeiro Europeu EEAGrants 2020-2024. A estreia da nova cópia digital decorreu a 28 de abril 2022, na sessão de abertura do 19º festival IndieLisboa.
Tiago Bartolomeu Costa é programador cultural. Foi coordenador do projeto FILMar entre 2021 e 2024.
realização, argumento e montagem ANTÓNIO DE MACEDO fotografia ELSO ROQUE som ALEXANDRE GONÇALVES produção FRANCISCO DE CASTRO
Albufeira, ver para lá do mar
O mar tem uma presença de relevo no cinema de António de Macedo, do mesmo modo que as encomendas às quais respondeu, produzindo anúncios que inventavam um modo de comunicação distinto, que fazem de ALBUFEIRA uma singular abordagem social, política e cultural muito para lá do cinema enquanto mecanismo de expressão.
Produzido por Francisco de Castro, o filme é uma resposta à entidade responsável pela promoção turística da região, e a resposta de António de Macedo não podia ser mais desarmante e desassombrada. O filme simula a visita de uma jornalista inglesa, acompanhada de duas amigas, responsável pela produção de uma reportagem sobre as singularidades do Algarve e, em particular, Albufeira, lugar mágico e encantatório para a comunidade britânica que, então, começava a instalar-se.
O filme é um exercício de observação e denúncia derrisória de um país que se pretendia aberto, mas se definia a partir do estereótipo cultural, muito em particular, no contraste exposto entre as figuras livres das três amigas, e as representações femininas, sujeitas a um empobrecimento cultural, estético e social, de certo modo distante do que eram as (poucas) conquistas sociais conseguidas pelas mulheres em Portugal no final da década de 1960. Talvez não fosse essa a intenção explícita do realizador mas, a esta distância, ALBUFEIRA surge como um importante documento sobre a condição da mulher portuguesa, no rude oposto da figura feminina liberal e livre que as três inglesas representam.
O mar, escreve-se acima, tem, de facto, uma presença no percurso de António de Macedo. A PROMESSA (1972), a partir da peça de Bernardo Santareno, é exemplo maior dessa relação, e mais ainda da opressão a que as mulheres eram sujeitas. Mas antes disso, com VERÃO COINCIDENTE, outra encomenda institucional, no caso para a Central de Cervejas, e onde ao poema de Maria Teresa Horta, lido por Carmen Dolores, se justapõem imagens de trabalho, de praia, de lazer, de força e de vidas regidas pelo tempo solar. São formas, bastante eficazes, de desmontar uma ideia de naturalidade na identidade nacional e através da qual – tal como, mais tarde, na sua única encenação para teatro, O MARINHEIRO (Teatro Nacional D. Maria II, 1983) – o mar haverá de ser hipótese de reflexão profunda sobre a ilusão de um coletivo.
Em ALBUFEIRA, esse coletivo é comentado com escárnio e malícia, numa montagem sinuosa que, aliada à composição musical e ao discurso, se oferece, com evidente deleite, à denúncia do paradoxo e do ridículo. Os intensos planos aéreos, as íntimas sequências de festa e de luxo, a exposição de um Algarve fabricado, que esconde a miséria social atrás das danças tradicionais, que promete a harmonia antes do caos urbanístico, que afasta a falha para sublinhar a virtude de um país de servidores, é campo vasto de intervenção fílmica, sempre do lado das protagonistas. É um filme feito a partir de um olhar livre, que liberta, ao mesmo tempo, o espetador da visão imposta por uma política de espírito redentora, porque observa, no alibi do olhar estrangeiro, a razão do erro, da perda e do limite de um Portugal todo ele ficcionado.
ALBUFEIRA é, em suma, um filme essencial para revelar como o cinema inventou formas de se colocar entre a verdade e a perceção. E, ainda, fingir que estava a vender o Algarve. Veríamos os erros conscientemente premonitórios, poucos ano depois.
O filme foi digitalizado pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito do projeto FILMar, com o apoio do Mecanismo Financeiro Europeu EEAGrants 2020-2024. A estreia da nova cópia digital decorreu a 28 de abril 2022, na sessão de abertura do 19º festival IndieLisboa.
Tiago Bartolomeu Costa é programador cultural. Foi coordenador do projeto FILMar entre 2021 e 2024.
realização, argumento e montagem ANTÓNIO DE MACEDO fotografia ELSO ROQUE som ALEXANDRE GONÇALVES produção FRANCISCO DE CASTRO