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CACTOS E AS OUTRAS PLANTAS 2018, PT, 21 min
um filme de CAMILA VALE
No Barreiro de hoje, Camila e Gabriel encontram-se. Entre margens e o lento crescimento
dos cactos, descobrem um no outro o meio para sentirem a ausência que os atravessa.
No Barreiro de hoje, Camila e Gabriel encontram-se. Entre margens e o lento crescimento
dos cactos, descobrem um no outro o meio para sentirem a ausência que os atravessa.
Entrevista a Camila Vale
Novocine: Os teus filmes exploram uma dimensão plástica onde o que ouvimos e aquilo que vemos servem propósitos muito diferentes, pois evocam imagens que não estamos necessariamente a ver, seria essa a tua intenção?
Camila Vale: Gosto muito da ideia de um cinema que vai além do que vemos e escutamos. No sentido em que a forma como filmo certas imagens que, por vezes, podem ser mais viscerais e sons que são gravados de uma forma muito próxima possam evocar uma reação corporal no espectador. Por vezes podem ser estados de imersão total ou até um certo desconforto. No momento em que estava a escrever o Cactos interessa-me muito por ASMR’s, de pessoas a comer ou falar muito baixinho, mas muito perto do microfone, alguns vídeos eram super relaxantes mas havia uns que me causavam um certo desconforto.
NC: Em Cactos e As Outras Plantas és a protagonista, este é o primeiro grande exemplo deste gesto no teu corpo de trabalho, como o recordas? E como é o teu processo de casting dos actores?
CV: Já tinha feito alguns exercícios de vídeo com o meu corpo. Coisas rápidas que queria muito filmar e na altura só estava lá eu e tinha uma ideia muito exacta do que queria e começava a filmar. Além de que sempre gostei de me colocar em situações físicas de extremo: como muito frio, cansaço, comer. Assim que há uma "ação" é uma missão para mim. Eu, pelo menos, vejo-o dessa forma. Torna-se sempre um exercício.
No caso do Cactos, a história começou no verão anterior a começarmos a rodagem e eu estava num momento complicado emocionalmente e o Gabriel, que tinha 10 anos, aproximou-se de mim e perguntou-me porque é que eu estava triste. Nós estávamos numa tarde de verão numa piscina. As crianças, incríveis como são, não conseguem perceber porque raio aquela rapariga está para ali a chorar com uma piscina ao lado. Mas ao mesmo tempo vi muito carinho da parte dele ao parar a sua brincadeira e perguntar-me isso. Neste caso, a resposta é esta: o filme começa pela relação entre mim e o Gabriel, que durante o processo do filme foi uma história de cuidar e conhecer. Portanto só podia ser eu e o Gabriel a fazê-lo. Depois fizemos um pequeno casting para ver como corria em câmera e para mostrar ao resto da equipa. E percebemos logo que havia ali algo.
NC: No Cactos e as Outras Plantas a personagem principal, é uma jovem adulta que vive sozinha, algo solitária e no processo de se tornar hospedeira de bordo, e cuja vida se cruza com a de um rapaz que fugiu de casa e é acolhido por ela. No Selvajaria (filme que sucede Cactos) a tua personagem é uma rapariga que arranja televisões/material electrónico e mantém uma relação sensual e curiosa com uma webcam girl. São dois filmes que fizeste sequencialmente, que escreves, realizas e protagonizas. Qual é a relação entre estas duas personagens que criaste? São duas pessoas diferentes?
CV: No Cactos havia uma relação muito direta com a minha vida, eu realmente tinha ido a uma entrevista para me tornar hospedeira de bordo e desistir do cinema. E fui aceite, mas depois conheci o Gabriel. Mas eu creio que a personagem do Selvajaria é a consequência da Camila do Cactos. No primeiro há uma tensão entre as preocupações da vida adulta vs infância. A Camila aparenta ter alguns medos, enquanto que o Gabriel apesar de jovem é corajoso e caminha sozinho. No Selvajaria exploro diferentes tipos de amor e relações físicas. Mas obviamente que se relacionam, as duas Camilas continuam a olhar para o mundo da mesma maneira, a cuidar de algo ou alguém.
NC: A música que acompanha Cactos e as Outras Plantas funciona como um tema que além de acompanhar, define e relembra o tom do filme. O prólogo inicial abre com essa mesma música. Foi algo premeditado?
CV: O tema que abre o Cactos foi inspirado nesse mesmo movimento que o Gabriel está a fazer, o que é engraçado porque foi uma cena filmada sem que ele soubesse e não estava no guião. Ou seja, transmite exatamente esta ideia juvenil, despreocupada, intuitiva do Gabriel.
NC: Nesse sentido, o trabalho que desenvolveste com o músico Pedro Tavares (funcionario.bandcamp.com) tanto no Cactos e as Outras Plantas como no Selvajaria acontece de que forma?
CV: Sim, eu e o Pedro trabalhamos juntos desde o meu primeiro filme e seguimos até hoje. Todos os temas são originais criados para os filmes. Mas o Cactos foi o primeiro filme que trabalhamos juntos e foi mais a banda sonora. Nos filmes seguintes trabalhamos som, foley e banda sonora. Percebemos que temos uma maneira de criar estes espaços sonoros semelhante.
NC: Como é o teu processo de trabalho, não só criativo, mas também a nível prático, dos teus filmes? O que destacarias? Que constrangimentos e liberdades tens encontrado?
CV: Bem, eu tive a sorte/azar de fazer os meus filmes sem fundos. Sorte neste caso porque tive um grupo de colegas/amigos talentosos com quem partilhei as ideias e colectivamente fizemos estes filmes. Às vezes sinto que tenho alguma dificuldade em apresentar uma ideia acabada antes de começar a filmar, porque há muita coisa que muda durante o processo. E na verdade o processo de filmar é o que me dá mais prazer. Há um espírito e um sacrifício colectivo. Muitas horas sem dormir. Essa experiência fica connosco quando vamos estrear um filme, por vezes gostava que fosse possível partilhá-la mais com o público. Como costumo filmar em casas, gosto muito de ter um momento para cozinhar para a equipa e os atores. É um momento em que todos estão relaxados e dá-me tempo para pensar, porque estou focado noutra coisa.
NC: Em que aspecto é que o teu interesse por cinema de arquivo e found footage, e o trabalho que desenvolves com revelação de pelicula, influencia os teus filmes e/ou como pensas o cinema? O que nos leva a outra questão: No que estás a trabalhar agora?
CV: Tenho um longo percurso com a película na verdade. Tive um laboratório com a Margarida Albino, leciono aulas de Super 8 no Arco há 5 anos e tenho um enorme arquivo de filmes domésticos. Essa relação com a película é difícil de explicar, mas creio que possa estar ligada com a tua primeira pergunta: a importância da materialidade nos meus projectos. Nesse sentido, o celuloide oferece uma extensa gama de possibilidades de manuseamento. Há uma liberdade criativa que vem de fazer coisas com as mãos, pelo menos na maneira como o vejo. Neste momento estou a fazer um mestrado em Arquivo na Elias Querejeta Zine Eskola, o meu projecto é sobre o manuseamento de máquinas de cópias analógicas, mais concretamente as potencialidades da Optical Printer - o conceito que estou a trabalhar é a dimensão do erótico no espaço doméstico. O que, agora que vejo, está extremamente relacionado com os meus filmes, na verdade.
NC: Conseguirias eleger algumas referências que para ti representam uma influência direta ou indireta no teu trabalho ou simplesmente objectos que consideras únicos e relevantes?
CV: Directamente e mais em relação ao Cactos, apesar de ser uma inspiração constante, o Tsai Ming Liang. Foi o primeiro realizador com quem me identifiquei e percebi que havia este tipo de cinema, no qual dentro de um copo de água existe todo um mundo de corpos que se movem em cidades. Os filmes da Lucrecia Martel também foram motores de inspiração principalmente em relação ao uso do som fora de campo, a importância do suor e do toque. Em relação à imagem em movimento fora da sala de cinema, o trabalho da Eija Liisa Ahtila e da Anne Charlotte Robinson tocaram-me por certa sensibilidade feminina e emocional que abordam. Estas personagens alienadas tentam subir os degraus da idade, infância, adolescência, vida adulta… Há uma cena que nunca me vou esquecer que é a Adele (La Vie d’Adele) a comer massa à bolonhesa, adoro um filme que dá vontade de comer quando saímos do cinema! Até hoje quando como massa bolonhesa lembro-me da Adele a comer e a lamber o garfo de seguida. A casa de banho, a cozinha e os meus vizinhos são as minhas grandes inspirações. Principalmente tomar banho.
argumento e realização CAMILA VALE imagem CAMILA VALE, MIGUEL TAVARES edição CAMILA VALE, MIGUEL TAVARES som JOÃO RAMOS, ELOÍSA SILVA com CAMILA VALE, GABRIEL ALBINO, CAROLINA MOURÃO, CLÁUDIA DE PALOL, ELOÍSA SILVA, INÊS DO CARMO, LEONOR GUERRA, MADALENA REBELO, MAURO CORDEIRO, MIGUEL TAVARES, TIAGO SOUSA banda sonora PEDRO TAVARES produção FILMES SIMULACRO
Novocine: Os teus filmes exploram uma dimensão plástica onde o que ouvimos e aquilo que vemos servem propósitos muito diferentes, pois evocam imagens que não estamos necessariamente a ver, seria essa a tua intenção?
Camila Vale: Gosto muito da ideia de um cinema que vai além do que vemos e escutamos. No sentido em que a forma como filmo certas imagens que, por vezes, podem ser mais viscerais e sons que são gravados de uma forma muito próxima possam evocar uma reação corporal no espectador. Por vezes podem ser estados de imersão total ou até um certo desconforto. No momento em que estava a escrever o Cactos interessa-me muito por ASMR’s, de pessoas a comer ou falar muito baixinho, mas muito perto do microfone, alguns vídeos eram super relaxantes mas havia uns que me causavam um certo desconforto.
NC: Em Cactos e As Outras Plantas és a protagonista, este é o primeiro grande exemplo deste gesto no teu corpo de trabalho, como o recordas? E como é o teu processo de casting dos actores?
CV: Já tinha feito alguns exercícios de vídeo com o meu corpo. Coisas rápidas que queria muito filmar e na altura só estava lá eu e tinha uma ideia muito exacta do que queria e começava a filmar. Além de que sempre gostei de me colocar em situações físicas de extremo: como muito frio, cansaço, comer. Assim que há uma "ação" é uma missão para mim. Eu, pelo menos, vejo-o dessa forma. Torna-se sempre um exercício.
No caso do Cactos, a história começou no verão anterior a começarmos a rodagem e eu estava num momento complicado emocionalmente e o Gabriel, que tinha 10 anos, aproximou-se de mim e perguntou-me porque é que eu estava triste. Nós estávamos numa tarde de verão numa piscina. As crianças, incríveis como são, não conseguem perceber porque raio aquela rapariga está para ali a chorar com uma piscina ao lado. Mas ao mesmo tempo vi muito carinho da parte dele ao parar a sua brincadeira e perguntar-me isso. Neste caso, a resposta é esta: o filme começa pela relação entre mim e o Gabriel, que durante o processo do filme foi uma história de cuidar e conhecer. Portanto só podia ser eu e o Gabriel a fazê-lo. Depois fizemos um pequeno casting para ver como corria em câmera e para mostrar ao resto da equipa. E percebemos logo que havia ali algo.
NC: No Cactos e as Outras Plantas a personagem principal, é uma jovem adulta que vive sozinha, algo solitária e no processo de se tornar hospedeira de bordo, e cuja vida se cruza com a de um rapaz que fugiu de casa e é acolhido por ela. No Selvajaria (filme que sucede Cactos) a tua personagem é uma rapariga que arranja televisões/material electrónico e mantém uma relação sensual e curiosa com uma webcam girl. São dois filmes que fizeste sequencialmente, que escreves, realizas e protagonizas. Qual é a relação entre estas duas personagens que criaste? São duas pessoas diferentes?
CV: No Cactos havia uma relação muito direta com a minha vida, eu realmente tinha ido a uma entrevista para me tornar hospedeira de bordo e desistir do cinema. E fui aceite, mas depois conheci o Gabriel. Mas eu creio que a personagem do Selvajaria é a consequência da Camila do Cactos. No primeiro há uma tensão entre as preocupações da vida adulta vs infância. A Camila aparenta ter alguns medos, enquanto que o Gabriel apesar de jovem é corajoso e caminha sozinho. No Selvajaria exploro diferentes tipos de amor e relações físicas. Mas obviamente que se relacionam, as duas Camilas continuam a olhar para o mundo da mesma maneira, a cuidar de algo ou alguém.
NC: A música que acompanha Cactos e as Outras Plantas funciona como um tema que além de acompanhar, define e relembra o tom do filme. O prólogo inicial abre com essa mesma música. Foi algo premeditado?
CV: O tema que abre o Cactos foi inspirado nesse mesmo movimento que o Gabriel está a fazer, o que é engraçado porque foi uma cena filmada sem que ele soubesse e não estava no guião. Ou seja, transmite exatamente esta ideia juvenil, despreocupada, intuitiva do Gabriel.
NC: Nesse sentido, o trabalho que desenvolveste com o músico Pedro Tavares (funcionario.bandcamp.com) tanto no Cactos e as Outras Plantas como no Selvajaria acontece de que forma?
CV: Sim, eu e o Pedro trabalhamos juntos desde o meu primeiro filme e seguimos até hoje. Todos os temas são originais criados para os filmes. Mas o Cactos foi o primeiro filme que trabalhamos juntos e foi mais a banda sonora. Nos filmes seguintes trabalhamos som, foley e banda sonora. Percebemos que temos uma maneira de criar estes espaços sonoros semelhante.
NC: Como é o teu processo de trabalho, não só criativo, mas também a nível prático, dos teus filmes? O que destacarias? Que constrangimentos e liberdades tens encontrado?
CV: Bem, eu tive a sorte/azar de fazer os meus filmes sem fundos. Sorte neste caso porque tive um grupo de colegas/amigos talentosos com quem partilhei as ideias e colectivamente fizemos estes filmes. Às vezes sinto que tenho alguma dificuldade em apresentar uma ideia acabada antes de começar a filmar, porque há muita coisa que muda durante o processo. E na verdade o processo de filmar é o que me dá mais prazer. Há um espírito e um sacrifício colectivo. Muitas horas sem dormir. Essa experiência fica connosco quando vamos estrear um filme, por vezes gostava que fosse possível partilhá-la mais com o público. Como costumo filmar em casas, gosto muito de ter um momento para cozinhar para a equipa e os atores. É um momento em que todos estão relaxados e dá-me tempo para pensar, porque estou focado noutra coisa.
NC: Em que aspecto é que o teu interesse por cinema de arquivo e found footage, e o trabalho que desenvolves com revelação de pelicula, influencia os teus filmes e/ou como pensas o cinema? O que nos leva a outra questão: No que estás a trabalhar agora?
CV: Tenho um longo percurso com a película na verdade. Tive um laboratório com a Margarida Albino, leciono aulas de Super 8 no Arco há 5 anos e tenho um enorme arquivo de filmes domésticos. Essa relação com a película é difícil de explicar, mas creio que possa estar ligada com a tua primeira pergunta: a importância da materialidade nos meus projectos. Nesse sentido, o celuloide oferece uma extensa gama de possibilidades de manuseamento. Há uma liberdade criativa que vem de fazer coisas com as mãos, pelo menos na maneira como o vejo. Neste momento estou a fazer um mestrado em Arquivo na Elias Querejeta Zine Eskola, o meu projecto é sobre o manuseamento de máquinas de cópias analógicas, mais concretamente as potencialidades da Optical Printer - o conceito que estou a trabalhar é a dimensão do erótico no espaço doméstico. O que, agora que vejo, está extremamente relacionado com os meus filmes, na verdade.
NC: Conseguirias eleger algumas referências que para ti representam uma influência direta ou indireta no teu trabalho ou simplesmente objectos que consideras únicos e relevantes?
CV: Directamente e mais em relação ao Cactos, apesar de ser uma inspiração constante, o Tsai Ming Liang. Foi o primeiro realizador com quem me identifiquei e percebi que havia este tipo de cinema, no qual dentro de um copo de água existe todo um mundo de corpos que se movem em cidades. Os filmes da Lucrecia Martel também foram motores de inspiração principalmente em relação ao uso do som fora de campo, a importância do suor e do toque. Em relação à imagem em movimento fora da sala de cinema, o trabalho da Eija Liisa Ahtila e da Anne Charlotte Robinson tocaram-me por certa sensibilidade feminina e emocional que abordam. Estas personagens alienadas tentam subir os degraus da idade, infância, adolescência, vida adulta… Há uma cena que nunca me vou esquecer que é a Adele (La Vie d’Adele) a comer massa à bolonhesa, adoro um filme que dá vontade de comer quando saímos do cinema! Até hoje quando como massa bolonhesa lembro-me da Adele a comer e a lamber o garfo de seguida. A casa de banho, a cozinha e os meus vizinhos são as minhas grandes inspirações. Principalmente tomar banho.
argumento e realização CAMILA VALE imagem CAMILA VALE, MIGUEL TAVARES edição CAMILA VALE, MIGUEL TAVARES som JOÃO RAMOS, ELOÍSA SILVA com CAMILA VALE, GABRIEL ALBINO, CAROLINA MOURÃO, CLÁUDIA DE PALOL, ELOÍSA SILVA, INÊS DO CARMO, LEONOR GUERRA, MADALENA REBELO, MAURO CORDEIRO, MIGUEL TAVARES, TIAGO SOUSA banda sonora PEDRO TAVARES produção FILMES SIMULACRO