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ERRAR A NOITE 2020, PT, 28 min
um filme de Flávio Gonçalves
Um jovem inquieto com a cabeça na lua termina mais um turno atrás do balcão de um bar de
engate. O regresso a casa é feito pelo caminho mais longo. Há a noite e as sombras que nela
se escondem que desejam ser descobertas – antes de a manhã iluminar aquilo de que não
consegue escapar.
“Uma catástrofe é a primeira estrofe de um poema de amor.”
Rilke
Rilke
Querido P...,
Perguntei ao jardineiro da noite por ti, mas ele disse que não te conhecia. Ignoro se continuas a fazer da noite dia. Desde a última vez que nos beijámos que te encontro só na minha cabeça. Nunca cheguei a Coimbra e tive de vender o carro para usar. Acredites ou não, hoje já não uso… mas continuo sem carro. Movo-me pelo subterrâneo. No metro, centenas são nenhum, ninguém olha ninguém e todos se entreolham como espiões. Toda a gente sabe que não olhar é como pedir para não ser notado.
Corrompido pela tua errância, fiquei adoecido com o modo como vivias a noite: repelido pelo regresso a casa, ávido de ignorância e aventura, suplicando por ser julgado como outro. Agora sou eu que procuro por ti, por toda a parte, sem te encontrar. A minha busca por ti fez-me apenas descobrir a vergonha e a culpa. A minha busca por ti continua a ser aquilo que arreda a chance de nos redescobrir. Disseram-me que devo “desromantizar”. Talvez não te ame. Talvez só deseje muito amar-te.
Oiço as bagatelas do ucraniano de que me falaste na noite em que dançámos na Alameda, molhados pelos aspersores. O meu corpo dói com saudade, por isso deito-me na cama. A angústia da falta de resposta e de solução para nós acelera- me o coração, não obstante os prescritos estabilizadores. O piano solitário do Silvestrov faz-me imaginar salões, travellings de câmara que atravessa por colunas colossais. Mas do palácio, onde bailavam os amantes, restam hoje escombros, vestígios contaminados. Apenas os fantasmas, à distância, não cessam os movimentos e sorrisos.
Gostavas de te imaginar o ladrão do Genet e do Mário de Sá-Carneiro citavas de cor como eras um amante inconstante que se traía a si mesmo. Gostavas de dizer que o bar era um caldeirão mágico, que lá vias mais cinema do que numa sala escura e que, algum dia, daqueles talões rascunhados ias fazer um filme. Não te apercebias que, protegido pela fortificação do bar, no outro lado do balcão, mascarado com o teu corpo despido, o que gostavas era de ser centro das atenções. Esquecias-te assim de como gostavas tanto e tão pouco de ti próprio.
Antes da estreia, na sala de cinema, as luzes baixavam e fundiam-nos na escuridão. Permiti-me então levantar o olhar para ti enquanto te tornavas sombra. Anoitecia a mesma camisa que levaste para a pista de dança. Lembro-me. O dj acertou, fez Kate Bush cantar o seu If… do pacto com Deus, e nós dançávamos, juntos no mesmo espaço, mas a léguas de distância, pois a fazer, a dizer, a tentar, não há senão nada. Foi um belo amanhecer, que partilhámos sem partilhar. Diante do sol que se anunciava, eu sorri e senti-me tão grato por termos feito parte da vida um do outro.
Sigo em frente porque não consigo seguir para trás, por onde me agradaria repetir, emendar, contemplar-te mais, olhar-nos melhor. O horror não está no passado, mas em como não consigo estragar mais a recordação de nós. No Eduardo, quando ainda existia a mesa de piquenique com restos de felicidade, ouvia-te, qual terrorista, gritar o meu nome: Pedro! E lá as víamos fugir, assustadas com a tua provocação, como quando o carro da polícia chega lá em cima e toda a nudez ilumina. Reclamávamos por amor e por liberdade incondicionais; apesar de ambos coincidirem, pretendíamo-nos acima do paradoxo. Mas certo o Proust quando escreveu que o erro é mais obstinado que a fé, pois não analisa as suas crenças. Abusámos tanto dos nossos corpos à procura de uma libertação que o que acabámos por nos libertar foi da nossa fugidia união – chamam-lhe agora de “tóxica”, e intoxicados, lá isso...!
A nossa morte esteve comigo desde que comecei a amar-te e não consigo ainda acreditar que, pelo menos, pudemos chorá-la juntos. Foi numa das nossas noites sem fim, irrisoriamente mocados, mas… Lembro-me. Abraçaste-me. Pressentiste comigo o nosso fim. Beijaste-me as lágrimas do temor e vivemos aquele presente como uma dádiva irrepetível.
realização e argumento FLÁVIO GONÇALVES com JOÃO REIS MOREIRA, RICARDO BARGÃO, ANTÓNIO CALDEIRA PIRES, SÉRGIO CORAGEM, PEDRO ANTUNES, JOÃO GALRÃO E FREDERICO RAMALHO direcção de produção MADALENA FRAGOSO produção ANA PINHÃO MOURA, MADALENA FRAGOSO assistência de realização e montagem MARGARIDA MENESES direcção de fotografia AFONSO MOTA anotação e casting RÚBEN GONÇALVES guarda-roupa RÚBEN OSÓRIO direcção de som MARCELO TAVARES mistura de som RAFAEL GONÇALVES CARDOSO cor e títulos AFONSO MOTA música original MIGUEL MENDES apoios INSTITUTO DO CINEMA E AUDIOVISUAL, FUNDAÇÃO GDA
Perguntei ao jardineiro da noite por ti, mas ele disse que não te conhecia. Ignoro se continuas a fazer da noite dia. Desde a última vez que nos beijámos que te encontro só na minha cabeça. Nunca cheguei a Coimbra e tive de vender o carro para usar. Acredites ou não, hoje já não uso… mas continuo sem carro. Movo-me pelo subterrâneo. No metro, centenas são nenhum, ninguém olha ninguém e todos se entreolham como espiões. Toda a gente sabe que não olhar é como pedir para não ser notado.
Corrompido pela tua errância, fiquei adoecido com o modo como vivias a noite: repelido pelo regresso a casa, ávido de ignorância e aventura, suplicando por ser julgado como outro. Agora sou eu que procuro por ti, por toda a parte, sem te encontrar. A minha busca por ti fez-me apenas descobrir a vergonha e a culpa. A minha busca por ti continua a ser aquilo que arreda a chance de nos redescobrir. Disseram-me que devo “desromantizar”. Talvez não te ame. Talvez só deseje muito amar-te.
Oiço as bagatelas do ucraniano de que me falaste na noite em que dançámos na Alameda, molhados pelos aspersores. O meu corpo dói com saudade, por isso deito-me na cama. A angústia da falta de resposta e de solução para nós acelera- me o coração, não obstante os prescritos estabilizadores. O piano solitário do Silvestrov faz-me imaginar salões, travellings de câmara que atravessa por colunas colossais. Mas do palácio, onde bailavam os amantes, restam hoje escombros, vestígios contaminados. Apenas os fantasmas, à distância, não cessam os movimentos e sorrisos.
Gostavas de te imaginar o ladrão do Genet e do Mário de Sá-Carneiro citavas de cor como eras um amante inconstante que se traía a si mesmo. Gostavas de dizer que o bar era um caldeirão mágico, que lá vias mais cinema do que numa sala escura e que, algum dia, daqueles talões rascunhados ias fazer um filme. Não te apercebias que, protegido pela fortificação do bar, no outro lado do balcão, mascarado com o teu corpo despido, o que gostavas era de ser centro das atenções. Esquecias-te assim de como gostavas tanto e tão pouco de ti próprio.
Antes da estreia, na sala de cinema, as luzes baixavam e fundiam-nos na escuridão. Permiti-me então levantar o olhar para ti enquanto te tornavas sombra. Anoitecia a mesma camisa que levaste para a pista de dança. Lembro-me. O dj acertou, fez Kate Bush cantar o seu If… do pacto com Deus, e nós dançávamos, juntos no mesmo espaço, mas a léguas de distância, pois a fazer, a dizer, a tentar, não há senão nada. Foi um belo amanhecer, que partilhámos sem partilhar. Diante do sol que se anunciava, eu sorri e senti-me tão grato por termos feito parte da vida um do outro.
Sigo em frente porque não consigo seguir para trás, por onde me agradaria repetir, emendar, contemplar-te mais, olhar-nos melhor. O horror não está no passado, mas em como não consigo estragar mais a recordação de nós. No Eduardo, quando ainda existia a mesa de piquenique com restos de felicidade, ouvia-te, qual terrorista, gritar o meu nome: Pedro! E lá as víamos fugir, assustadas com a tua provocação, como quando o carro da polícia chega lá em cima e toda a nudez ilumina. Reclamávamos por amor e por liberdade incondicionais; apesar de ambos coincidirem, pretendíamo-nos acima do paradoxo. Mas certo o Proust quando escreveu que o erro é mais obstinado que a fé, pois não analisa as suas crenças. Abusámos tanto dos nossos corpos à procura de uma libertação que o que acabámos por nos libertar foi da nossa fugidia união – chamam-lhe agora de “tóxica”, e intoxicados, lá isso...!
A nossa morte esteve comigo desde que comecei a amar-te e não consigo ainda acreditar que, pelo menos, pudemos chorá-la juntos. Foi numa das nossas noites sem fim, irrisoriamente mocados, mas… Lembro-me. Abraçaste-me. Pressentiste comigo o nosso fim. Beijaste-me as lágrimas do temor e vivemos aquele presente como uma dádiva irrepetível.
realização e argumento FLÁVIO GONÇALVES com JOÃO REIS MOREIRA, RICARDO BARGÃO, ANTÓNIO CALDEIRA PIRES, SÉRGIO CORAGEM, PEDRO ANTUNES, JOÃO GALRÃO E FREDERICO RAMALHO direcção de produção MADALENA FRAGOSO produção ANA PINHÃO MOURA, MADALENA FRAGOSO assistência de realização e montagem MARGARIDA MENESES direcção de fotografia AFONSO MOTA anotação e casting RÚBEN GONÇALVES guarda-roupa RÚBEN OSÓRIO direcção de som MARCELO TAVARES mistura de som RAFAEL GONÇALVES CARDOSO cor e títulos AFONSO MOTA música original MIGUEL MENDES apoios INSTITUTO DO CINEMA E AUDIOVISUAL, FUNDAÇÃO GDA