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FORDLÂNDIA MALAISE 2019, PT, 40 min
um filme de Susana Sousa Dias
Filme sobre o presente e a memória de Fordlândia, uma company town fundada por Henry Ford na floresta amazónica em 1928, para escapar ao monopólio britânico da borracha. Hoje, o que permanece das construções atesta a escala do fracasso deste empreendimento neo-colonialista que durou menos de uma década.
Actualmente, a Fordlândia é um espaço suspenso; suspenso entre tempos (séculos XX e XXI), entre utopia e distopia, entre visibilidade e invisibilidade: construções arquitectónicas de aço, vidro e alvenaria ainda permanecem em uso enquanto vestígios da vida autóctone não deixaram qualquer marca no solo.
Embora Fordlândia seja conhecida devido ao curto período Fordiano, não se pode esquecer a história anterior e posterior a estes anos.
Dando voz aos habitantes que, rejeitando o rótulo de cidade-fantasma, reclamam o direito de escrever a sua própria história, Fordlandia Malaise combina imagens de arquivo, filmagens de drone, testemunhos, contos e narrativas, mitos e canções.
Filme sobre o presente e a memória de Fordlândia, uma company town fundada por Henry Ford na floresta amazónica em 1928, para escapar ao monopólio britânico da borracha. Hoje, o que permanece das construções atesta a escala do fracasso deste empreendimento neo-colonialista que durou menos de uma década.
Actualmente, a Fordlândia é um espaço suspenso; suspenso entre tempos (séculos XX e XXI), entre utopia e distopia, entre visibilidade e invisibilidade: construções arquitectónicas de aço, vidro e alvenaria ainda permanecem em uso enquanto vestígios da vida autóctone não deixaram qualquer marca no solo.
Embora Fordlândia seja conhecida devido ao curto período Fordiano, não se pode esquecer a história anterior e posterior a estes anos.
Dando voz aos habitantes que, rejeitando o rótulo de cidade-fantasma, reclamam o direito de escrever a sua própria história, Fordlandia Malaise combina imagens de arquivo, filmagens de drone, testemunhos, contos e narrativas, mitos e canções.
Texto por Joana de Sousa
Henry Ford, fundador da marca com o seu nome, tinha uma visão utópica de futuro. Para ele, nesse amanhã risonho e próspero, a indústria e a vida de cada indivíduo estariam totalmente integradas uma na outra. Os operários trabalhariam nas fábricas, com salários altos e horários de oito horas por dia, tendo tempo livre e poder económico suficiente para consumirem os produtos que produzissem, assim alimentando a própria indústria onde trabalhavam. Estes operários seriam liderados por pessoas com visão, que oferecessem uma resposta integrada para todas as suas necessidades, deixando-os livres para trabalharem e consumirem. Para Ford, não havia nada que não pudesse ser moldado pelo trabalho e vontade humanas. Inclusive o próprio ser humano.
Em 1926, a Companhia Ford Industrial do Brasil começou a construção do projecto que viria a ser chamado de Fordlândia. Este iniciou-se pois Ford precisava de criar um centro de produção de látex para fornecer as suas fábricas de pneus nos EUA. Foi construída uma cidade, de traços norte-americanos, no meio da selva amazónica. Para além do complexo de extração e fabricação de látex, Ford providenciou todas as infraestruturas necessárias para que os seus trabalhadores norte-americanos tivessem uma vida cheia e feliz dentro do seu ideal de sociedade. Aquele corpo estranho foi implantado na paisagem com aparente eficiência e rapidez. De tal forma, que o projecto foi tomado como exemplo por capitalistas e industrialistas.
Mas, na verdade, desde o começo que o corpo estranho encontrou resistência. Os gerentes norte-americanos não estavam preparados para o clima amazónico, vários sucumbiram à febre amarela e à malária. Os fracos conhecimentos de agricultura tropical fizeram com que os campos plantados de seringueiras fossem duramente afectados por pragas e outros problemas. Os camponeses brasileiros eram obrigados a um duro regime de trabalho e a consumir comida e outros produtos tipicamente norte-americanos, que não eram bem aceites. Álcool, mulheres, tabaco e jogos de futebol foram proibidos e os trabalhadores criaram um refúgio nos limites da cidade, chamado “Ilha da Inocência”, com bares, discotecas e bordéis. Depois de assumirem o insucesso do projecto, a companhia Ford vendeu a cidade ao Estado brasileiro em 1945. Fordlândia, então abandonada por quem a criou mas com infraestruturas ainda em boas condições, é ocupada por alguns habitantes das localidades vizinhas.
Fordlândia Malaise surge de um convite a Susana de Sousa Dias para participar numa residência artística organizada pelo colectivo Suspended Spaces, cujo nome reflecte o seu foco de interesse: o pensamento e a criação sobre aquilo a que chamam “espaços suspensos”, que não cumpriram a função para a qual foram edificados ou construídos. Fordlândia, sufocada pelo fracasso de uma utopia extrativista, é vista com um recurso esgotado, uma cidade fantasma. Mas o que Susana de Sousa Dias encontra é, na verdade, uma paisagem interpretada por diferentes narrativas. Ali, há outros sonhos de futuro. Mas, afinal, quais são os sonhadores a que a História tem dado mais importância?
Na tensão entre passados e futuros plurais, Susana de Sousa Dias desconstrói o filme etnográfico ao provocar uma mutação dos arquivos, da ordenação e da hierarquia para o caos energético e ritual estroboscópico. Um olho que tão depressa é máquina como beija-flor, dá-nos a ver aquele lugar onde vozes nos falam sobre as utopias que lá foram nascendo e morrendo. Um lugar amaldiçoado por uma mulher violentada, que é a própria Natureza. Mas o corpo estranho, eficiente e arrogante, é expulso pela própria ferida que abre. Em Fordlândia Malaise, há o futuro que nasce do apocalipse e o arquivo que se mistura com reza, que se confunde com fantasma, que se transforma em forró.
Canção “Mãe-Terra”, cantada por Júnior Brito.
Produzida pela Agremiação Folclórica de Fordlândia, 2021.
realização, fotografia e montagem SUSANA DE SOUSA DIAS som ANTÓNIO DE SOUSA DIAS, SUSANA DE SOUSA DIAS mistura de som PEDRO GÓIS produção ANSGAR SCHAEFER / KINTOP
“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.”
Escrito por Ailton Krenak (ambientalista, jornalista, educador, escritor e liderança indígena do povo Krenak), no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, editado pela Companhia das Letras em 2020.
Henry Ford, fundador da marca com o seu nome, tinha uma visão utópica de futuro. Para ele, nesse amanhã risonho e próspero, a indústria e a vida de cada indivíduo estariam totalmente integradas uma na outra. Os operários trabalhariam nas fábricas, com salários altos e horários de oito horas por dia, tendo tempo livre e poder económico suficiente para consumirem os produtos que produzissem, assim alimentando a própria indústria onde trabalhavam. Estes operários seriam liderados por pessoas com visão, que oferecessem uma resposta integrada para todas as suas necessidades, deixando-os livres para trabalharem e consumirem. Para Ford, não havia nada que não pudesse ser moldado pelo trabalho e vontade humanas. Inclusive o próprio ser humano.
Em 1926, a Companhia Ford Industrial do Brasil começou a construção do projecto que viria a ser chamado de Fordlândia. Este iniciou-se pois Ford precisava de criar um centro de produção de látex para fornecer as suas fábricas de pneus nos EUA. Foi construída uma cidade, de traços norte-americanos, no meio da selva amazónica. Para além do complexo de extração e fabricação de látex, Ford providenciou todas as infraestruturas necessárias para que os seus trabalhadores norte-americanos tivessem uma vida cheia e feliz dentro do seu ideal de sociedade. Aquele corpo estranho foi implantado na paisagem com aparente eficiência e rapidez. De tal forma, que o projecto foi tomado como exemplo por capitalistas e industrialistas.
Mas, na verdade, desde o começo que o corpo estranho encontrou resistência. Os gerentes norte-americanos não estavam preparados para o clima amazónico, vários sucumbiram à febre amarela e à malária. Os fracos conhecimentos de agricultura tropical fizeram com que os campos plantados de seringueiras fossem duramente afectados por pragas e outros problemas. Os camponeses brasileiros eram obrigados a um duro regime de trabalho e a consumir comida e outros produtos tipicamente norte-americanos, que não eram bem aceites. Álcool, mulheres, tabaco e jogos de futebol foram proibidos e os trabalhadores criaram um refúgio nos limites da cidade, chamado “Ilha da Inocência”, com bares, discotecas e bordéis. Depois de assumirem o insucesso do projecto, a companhia Ford vendeu a cidade ao Estado brasileiro em 1945. Fordlândia, então abandonada por quem a criou mas com infraestruturas ainda em boas condições, é ocupada por alguns habitantes das localidades vizinhas.
Fordlândia Malaise surge de um convite a Susana de Sousa Dias para participar numa residência artística organizada pelo colectivo Suspended Spaces, cujo nome reflecte o seu foco de interesse: o pensamento e a criação sobre aquilo a que chamam “espaços suspensos”, que não cumpriram a função para a qual foram edificados ou construídos. Fordlândia, sufocada pelo fracasso de uma utopia extrativista, é vista com um recurso esgotado, uma cidade fantasma. Mas o que Susana de Sousa Dias encontra é, na verdade, uma paisagem interpretada por diferentes narrativas. Ali, há outros sonhos de futuro. Mas, afinal, quais são os sonhadores a que a História tem dado mais importância?
Na tensão entre passados e futuros plurais, Susana de Sousa Dias desconstrói o filme etnográfico ao provocar uma mutação dos arquivos, da ordenação e da hierarquia para o caos energético e ritual estroboscópico. Um olho que tão depressa é máquina como beija-flor, dá-nos a ver aquele lugar onde vozes nos falam sobre as utopias que lá foram nascendo e morrendo. Um lugar amaldiçoado por uma mulher violentada, que é a própria Natureza. Mas o corpo estranho, eficiente e arrogante, é expulso pela própria ferida que abre. Em Fordlândia Malaise, há o futuro que nasce do apocalipse e o arquivo que se mistura com reza, que se confunde com fantasma, que se transforma em forró.
Canção “Mãe-Terra”, cantada por Júnior Brito.
Produzida pela Agremiação Folclórica de Fordlândia, 2021.
realização, fotografia e montagem SUSANA DE SOUSA DIAS som ANTÓNIO DE SOUSA DIAS, SUSANA DE SOUSA DIAS mistura de som PEDRO GÓIS produção ANSGAR SCHAEFER / KINTOP