NOVOCINE

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FRÁGIL COMO O MUNDO 2001. PT. 90 min


um filme de Rita Azevedo Gomes

Cópia digitalizada pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Medida integrada no programa Next Generation EU

Vera e João são dois adolescentes apaixonados. Aparentemente, a sua vida não lhes apresenta quaisquer problemas. Ambos têm família e amigos que os amam. Enquanto adolescentes que são, toda a sua vida fora definida por outros. O casal sente que não tem espaço, e principalmente, não tem tempo para viver a sua paixão. Para além de se ocuparem com os estudos, as suas casas estão distantes. Mas o maior problema reside no facto de sentirem que o seu próprio tempo de vida não lhes permite amar-se. Tentando definir o seu futuro, Vera e João iniciam um plano de fuga. Com a mesma inocência com que participam num jogo infantil, fogem de suas casas, e afastam-se das suas terras. O casal isola-se numa floresta. Aí chegados, fazem um pacto: nunca se separarão "por nada deste mundo".



texto por Teresa Vieira

Pelo reflexo da água que corre, vemos o infinito que acima de nós se prolonga. Pelas ruínas do lugar habitado, circulamos pelo potencial da(s) história(s que ficaram por contar). Tudo começa em cor - num princípio de palpável -, numa passagem adornada pela melodia, pelo instrumento que nos transporta para o reino familiar do imaginável. Um traço das notas de contos, fábulas, lendas: notas de beleza, inocência, maldição e tragédia, reunidos num espaço comum. Registos esses que constituem parte da memória cultural popular - e não só. Heranças que nos chegam, das criações e fórmulas que suscitam, no seu particular, um universal reconhecível, carregando em si o “além-real” (a partir dele) que nos permite tanto sonhar como recear (e vice-versa, e tudo ao mesmo tempo). Atravessamos estes campos em Frágil como o Mundo. E, a certo momento (aqui fugimos da linha do tempo linear), escutamos que as lendas são feitas dos nossos medos - em particular, do medo de falta de significado, de uma aridez de vida. Eis que a efabulação - esse amor por algo mais, por algo tão nosso e de todos - poderá trazer, como a primeira melodia, um certo (agri-)doce de quem se deixa levar pelos caminhos aí traçados. Assim prosseguimos.

Deixamos a cor e passamos ao (suposto) binário visual da ideia de passado (ou clássico) fílmico: o preto-e-branco (por onde ficamos, mas não sempre). Assim damos o primeiro de muitos passos nesta obra. Que nos retrata uma história de amor impossível entre dois jovens: Vera e João (seu). Duas pessoas que o destino de alguma forma ligou (não sabemos quando, não sabemos como; não interessa quando, não interessa como), que na impossibilidade são levados à criação da sua própria rota alternativa, para a vivência plena (ou utópica) no amor - esse todo que (n)os guia. Vera capta o nosso olhar desde o primeiro momento e as suas relações familiares são aquilo que nos aproxima inicialmente de si. Se no início deste texto se fala da herança transmitida pelas histórias (criadas, contadas, repetidas, marcadas nas textualidades e nas oralidades), falamos também da passagem da tradição, de condição. E assim se inicia: numa passagem de testemunho de mãe para filha. Conhecer Vera é conhecer o que aprendeu com a sua mãe, o seu avô, o seu pai - seja numa continuação daquilo que recebeu ou na fuga do mesmo. E por aí ficamos, naquilo que poderá ser descrito como uma primeira parte do filme: no estar à escuta daquilo que constitui o ambiente, daquilo que constitui a situação de uma das duas partes (esse também todo) do romance prometido. Entendemos que a ideia de mudança de vida vem da sua própria origem: a mãe e o pai de Vera passaram por isso. Entendemos que a ligação à espiritualidade - uma das poesias do real - conecta o avô com neta. Entendemos que há uma fórmula diferente que quer encontrar e viver para - e em - si mesma. Conhecer Vera é reconhecer no seu olhar a sensação de quem se perdeu - naquele momento de encontro - no amor. Muitas das suas palavras estão no lugar do indizível: a expressão de quem procura e luta por aquilo que o coração (esse “músculo nobre”) almeja.

O real momento de mergulho pelo universo - sempre único - do par acontece naquela que poderá ser descrita como a segunda parte do filme: no estar à escuta das sensações e emoções em permanente troca entre Vera e João, mas também entre o par e os elementos da floresta - ou do natural - que os rodeia. O seu amor reluz nos gestos dos corpos. Cruzados em paralelismo, em perpendicularidade, em imagens que sentimos belas e apaixonantes na sua sinceridade e simplicidade majestosa: imagens dignas da posteridade simbólica, onde já estarão - ou ficarão. Nas imagens da eternidade, dos livros da efémera história da humanidade, em que o amor trespassa a passagem da vida para a morte. Mas que pode causar essa mesma passagem. Eis que se pressente, se espera, se concretiza a tragédia do sublime - o destino que muitos esperam, que muitos reconhecem. Assim, eis que se cria a lenda, eis que se faz o filme, eis que se vê o desfecho: num rio que corre(rá sem fim).

Se tudo isto - ou a noção de sentimentos arrebatadores pelo menos - sugere uma linha de dramatização, de exacerbar dos gestos, das palavras e situações, a verdade é que somos levados por um fluxo contínuo de serenidade (talvez de desolação, talvez daquilo que, no fundo, é a vida). Na serenidade desperançosa de um tempo e espaço próprio: de permanência nas sonoridades do natural - o estar presente no campo em que estamos, sem o puxar dos floreados da imposição constante musical -, nos lugares em que o movimento se estende para além da (dita) acção.

No entanto, não ficamos presos ao que escapa do artificial: não deixamos as pontuações da fantasia, a linha que qualquer romance exige. Seja nas palavras dos escritos dos mais diversos autores que são proferidas - a teatralidade da palavra e da voz -, a um nevoeiro que sugere uma fuga para um imaginário, que tanto bloqueia como expande o que aos nossos olhos é permitido ver. E, a certo momento (aqui fugimos mais uma vez da linearidade), escutamos além de um gosto pelo nevoeiro, uma referência do medo do esquecimento - e que o esquecimento pode ser daquilo que é o mais importante. Ora esquecer e lembrar é entrar no jogo da luz e da sombra, dos campos despidos a floridos. Encontrar o amor é tanto esquecer como lembrar; sentir o calor de um sol que arde incessantemente, perdendo-se na escuridão; correr pelos corredores de um campo despido, e deixar o corpo sucumbir numa cama de flores: a potência de um suspiro que grita ao infinito tudo o que quer, tudo o que sonha, tudo o que teme e tudo o que mais. Uma essência de verdade poucas vezes tangível - muitas vezes ambicionada - , que na sua possibilidade de existência (na individualidade e comunhão) permanece. Uma ligação eterna ao mundo (esse tão frágil), a um “outro” e a todos que nele habitam e que por ele passarão.





realização e argumento RITA AZEVEDO GOMES com MARIA GONÇALVES, BRUNO TERRA, MANUELA FREITAS e DUARTE DE ALMEIDA imagem ACÁCIO DE ALMEIDA som ANTOINE BONFANTI, JOAQUIM PINTO, PEDRO MELO, PHILIPPE MOREL, RICARDO LEAL décors e guarda-roupa PAULA MIGALHADA e THOMAS TOUTAIN montagem PATRÍCIA SARAMAGO produção PAULO BRANCO digitalização CINEMATECA PORTUGUESA