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IMAGENS 1972. BR. 68 min
um filme de Luiz Rosemberg Filho
Sem sons, diálogos e com atores desconhecidos, as imagens são o foco da obra. Imagens que desejam despertar, questionar momentos determinantes, estado das linguagens de um sistema, a moralidade das mortes, a imobilidade, o silêncio, de entre outros assuntos.
Sem sons, diálogos e com atores desconhecidos, as imagens são o foco da obra. Imagens que desejam despertar, questionar momentos determinantes, estado das linguagens de um sistema, a moralidade das mortes, a imobilidade, o silêncio, de entre outros assuntos.
Na lata de lixo da história há um verme que vibra
Por Victor Guimarães
O realizador está diante da câmera numa praia deserta. Tem a boca tapada, os cabelos longos desgrenhados, a camisa branca empapada de sangue. Os óculos parecem obstruir-lhe a visão. O título do filme em caixa alta – IMAGENS – palpita sobre esse rosto, interrompendo-o, ao ritmo de um batimento cardíaco. Logo chegarão outros lampejos entrecortados: uma mão que acaricia as costas de uma mulher, um rosto masculino pintado, retalhado pela borda do quadro, um pênis adormecido em primeiro plano, uma longa frase escrita nas costas de uma outra mulher que caminha pela praia, uma dedicatória: “trabalho dedicado a Glauber Rocha”. O turbilhão profético inicial culmina numa série de telas negras que continuam a intercalar a imagem do realizador que nos encara amordaçado. A pulsação inicial de Imagens nos instala em um ritmo fragmentário, descontínuo, como se o esforço de erguer uma imagem fosse constantemente interrompido por um fracasso iminente. Uma respiração sufocada, uma vibração atravancada, um silêncio renitente, que rima com as alegorias da repressão que começamos a vislumbrar.
Como esse mar esbranquiçado que entrevemos no fundo do quadro inicial, Imagens oscila entre algumas ondas visuais que se intercalam, e terminam por sobrepor-se na memória do espectador. Estão aqui as alegorias diretas do momento histórico do país: o mapa do Brasil com um revólver no meio, o pau dormido e ensanguentado às vésperas da castração, a mordaça, o perseguidor que encontra um corpo nu embaixo do tapete, os cadáveres espalhados pelo chão da sala, a longa sequência de tortura contra um barbudo nu, perpetrada por um milico religioso de sunga, um agente da repressão de terno e um imperialista vestido com as cores da bandeira estadunidense. Aqui, estamos a meio caminho entre o arquétipo ideológico e o deboche pop, ou entre a Señorita USA de Alianza para el Progreso (Julio Ludueña, 1971) e o nazista tropical de Hitler III Mundo (José Agrippino de Paula, 1968).
Mas há também as longas sequências de caminhadas rumo ao nada, de corpos que se roçam sem se impregnar, povoados de burgueses em trajes de gala ou de figuras de rosto pintado que espiam da borda do quadro ou convivem no mesmo plano sur-real, como que desgarrados do presente, vagando num terreno baldio e mítico. Nessa onda vaga, imprecisa, nesses lampejos de pura inércia ou prostração, impera o “cinema do absurdo, das angústias existenciais” que Cacá Diegues denunciava nos Cahiers du Cinéma, e que Rosemberg assume como força motriz. Aqui predomina a significância, mais que o significado; a sensação, mais que o sentido. O poema se basta a si mesmo, sem necessidade de passar à prosa política.
“Deixar um desejo nascer, nutri-lo, desenvolvê-lo, alimentá-lo, irritá-lo, satisfazê-lo, é todo um poema”, diz justamente uma das frases diretamente inscritas com tinta sobre os corpos. Nesses letreiros vivos, estamos mais próximos da vibrante cena das artes visuais cariocas desse momento, com uma forte presença da performance e do tom de manifesto. Em Imagens, as ondas alegóricas ou sur-reais são sempre entrecortadas, ora por esses breves tableaux performático-poéticos, ora por um gesto de colagem de arquivos expropriados – bastante típico na obra de Luiz Rosemberg Filho, desde O Jardim das Espumas (1971), passando por A$$untina das Américas (1976), até os trabalhos em vídeo de décadas recentes –, que vêm ora na forma de recortes publicitários, ora de fragmentos documentais, como aquele em que centenas de crianças participam de uma espécie de desfile militar. Nessas ondas curtas, como numa interferência radiofônica, o fluxo se interrompe brevemente, para depois ser relançado adiante.
Mas essas ondas todas, claro, não estão apartadas. Como num mar borrascoso, se misturam e se confundem, ao ponto do indiscernível. Um dos refrães visuais do filme é a imagem de uma mulher nua, curvada sobre si mesma, em mítica posição fetal, mas que remete imediatamente – para quem tem olhos latino-americanos para ver – à figura do corpo no pau-de-arara, tática de tortura favorita das ditaduras do Cone Sul. Alegoria, manifesto, esboço de ficção, colagem, poema, ensaio sociológico, ressonância mítica, pura sensação: o cinema de Luiz Rosemberg Filho está grávido de contrários, como um poema de amor escrito às escondidas na contracapa de um livro de Marx. Um filme em que rimar e resistir são tarefas igualmente necessárias, igualmente deliciosas. Não por acaso Rosemberg dedica o filme a Glauber Rocha, e não por acaso Glauber dirá que “Rosemberg é o mais consequente artista underground made in 68”.
Ao final, o realizador na praia retornará, agora em plano longo, sem interrupções. O sangue agora irrompe aos borbotões, asperso do fora de quadro, enquanto a câmera se aproxima do rosto. À palavra “fim” se acrescenta um ano, como uma declaração de princípios ou uma inscrição raivosa na tira de película destinada a um futuro incerto: “1972”. A nomeação do ano é um lembrete aos arqueólogos do futuro: aqui, neste país, no auge do período mais violento da última ditadura civil-militar, um artista livre só poderia mesmo fazer um filme assim: mudo, em preto e branco, povoado de imagens violentas e de seres prostrados, de olhares cansados e de caminhadas rumo a lugar nenhum, de rostos estilhaçados pelo enquadramento e de ritmo atravancado, de frases a meio caminho entre o poema lírico e o ensaio sociológico e de corpos nus, porém incapacitados para o amor.
Um tempo em que, enquanto o imortal Cacá Diegues alertava nos Cahiers sobre a ameaça de um “suicídio cultural e político”, de “um cinema irresponsável e perigoso”, o entendido João Silvério Trevisan berrava “como um louco no hospício”, e saudava “a podridão daqueles que estão abrindo mão de tudo”. Imagens é uma ode a esse cinema resolutamente suicida, destinado à clandestinidade ou à lata de lixo da história. A esse cinema que, com sorte, permaneceria esquecido por décadas no porão de um arquivo europeu, sem que se diga nunca como é que foi parar lá, nem por que não retornou até que fosse tarde demais para acusar o saque. Imagens é menos uma arma valiosa voltada aos lutadores de seu presente, e mais uma carta lírica e furiosa, prenhe de urgência, mas destinada aos sobreviventes do futuro. “Fita com o olhar o ocidente do futuro no passado”, diz a frase inscrita sobre um par de seios. Nesta fita, carcomida pela época de sua realização, sobrevive o alerta: o ocaso do futuro já estava aqui. Mas sobressalta ainda o imperativo do poema: olha.
Referências:
DIEGUES, Carlos. AUMONT, J.; DE GREGORIO, E.; PIERRE, S. Entretien avec Carlos Diegues. Cahiers du cinéma, nº 225, p. 50, nov.-déc. 1970.
ROCHA, Glauber. Citado em FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Azougue, 2016, p. 298.
TREVISAN, João Silvério. Citado em FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Azougue, 2016, p. 107.
realização e argumento LUIZ ROSEMBERG FILHO produtora SÔNIA ANDRADE imagem AMAURY LEENHARDT som CELSO MUNIZ montadora SUELY RICHERS com SÔNIA ANDRADE, ALVIM BARBOSA, ECHIO REIS, FABÍOLA FRACAROLI, FERNANDO DE AMARAL PICCININI, GRÉCIA VANICORI
Por Victor Guimarães
O realizador está diante da câmera numa praia deserta. Tem a boca tapada, os cabelos longos desgrenhados, a camisa branca empapada de sangue. Os óculos parecem obstruir-lhe a visão. O título do filme em caixa alta – IMAGENS – palpita sobre esse rosto, interrompendo-o, ao ritmo de um batimento cardíaco. Logo chegarão outros lampejos entrecortados: uma mão que acaricia as costas de uma mulher, um rosto masculino pintado, retalhado pela borda do quadro, um pênis adormecido em primeiro plano, uma longa frase escrita nas costas de uma outra mulher que caminha pela praia, uma dedicatória: “trabalho dedicado a Glauber Rocha”. O turbilhão profético inicial culmina numa série de telas negras que continuam a intercalar a imagem do realizador que nos encara amordaçado. A pulsação inicial de Imagens nos instala em um ritmo fragmentário, descontínuo, como se o esforço de erguer uma imagem fosse constantemente interrompido por um fracasso iminente. Uma respiração sufocada, uma vibração atravancada, um silêncio renitente, que rima com as alegorias da repressão que começamos a vislumbrar.
Como esse mar esbranquiçado que entrevemos no fundo do quadro inicial, Imagens oscila entre algumas ondas visuais que se intercalam, e terminam por sobrepor-se na memória do espectador. Estão aqui as alegorias diretas do momento histórico do país: o mapa do Brasil com um revólver no meio, o pau dormido e ensanguentado às vésperas da castração, a mordaça, o perseguidor que encontra um corpo nu embaixo do tapete, os cadáveres espalhados pelo chão da sala, a longa sequência de tortura contra um barbudo nu, perpetrada por um milico religioso de sunga, um agente da repressão de terno e um imperialista vestido com as cores da bandeira estadunidense. Aqui, estamos a meio caminho entre o arquétipo ideológico e o deboche pop, ou entre a Señorita USA de Alianza para el Progreso (Julio Ludueña, 1971) e o nazista tropical de Hitler III Mundo (José Agrippino de Paula, 1968).
Mas há também as longas sequências de caminhadas rumo ao nada, de corpos que se roçam sem se impregnar, povoados de burgueses em trajes de gala ou de figuras de rosto pintado que espiam da borda do quadro ou convivem no mesmo plano sur-real, como que desgarrados do presente, vagando num terreno baldio e mítico. Nessa onda vaga, imprecisa, nesses lampejos de pura inércia ou prostração, impera o “cinema do absurdo, das angústias existenciais” que Cacá Diegues denunciava nos Cahiers du Cinéma, e que Rosemberg assume como força motriz. Aqui predomina a significância, mais que o significado; a sensação, mais que o sentido. O poema se basta a si mesmo, sem necessidade de passar à prosa política.
“Deixar um desejo nascer, nutri-lo, desenvolvê-lo, alimentá-lo, irritá-lo, satisfazê-lo, é todo um poema”, diz justamente uma das frases diretamente inscritas com tinta sobre os corpos. Nesses letreiros vivos, estamos mais próximos da vibrante cena das artes visuais cariocas desse momento, com uma forte presença da performance e do tom de manifesto. Em Imagens, as ondas alegóricas ou sur-reais são sempre entrecortadas, ora por esses breves tableaux performático-poéticos, ora por um gesto de colagem de arquivos expropriados – bastante típico na obra de Luiz Rosemberg Filho, desde O Jardim das Espumas (1971), passando por A$$untina das Américas (1976), até os trabalhos em vídeo de décadas recentes –, que vêm ora na forma de recortes publicitários, ora de fragmentos documentais, como aquele em que centenas de crianças participam de uma espécie de desfile militar. Nessas ondas curtas, como numa interferência radiofônica, o fluxo se interrompe brevemente, para depois ser relançado adiante.
Mas essas ondas todas, claro, não estão apartadas. Como num mar borrascoso, se misturam e se confundem, ao ponto do indiscernível. Um dos refrães visuais do filme é a imagem de uma mulher nua, curvada sobre si mesma, em mítica posição fetal, mas que remete imediatamente – para quem tem olhos latino-americanos para ver – à figura do corpo no pau-de-arara, tática de tortura favorita das ditaduras do Cone Sul. Alegoria, manifesto, esboço de ficção, colagem, poema, ensaio sociológico, ressonância mítica, pura sensação: o cinema de Luiz Rosemberg Filho está grávido de contrários, como um poema de amor escrito às escondidas na contracapa de um livro de Marx. Um filme em que rimar e resistir são tarefas igualmente necessárias, igualmente deliciosas. Não por acaso Rosemberg dedica o filme a Glauber Rocha, e não por acaso Glauber dirá que “Rosemberg é o mais consequente artista underground made in 68”.
Ao final, o realizador na praia retornará, agora em plano longo, sem interrupções. O sangue agora irrompe aos borbotões, asperso do fora de quadro, enquanto a câmera se aproxima do rosto. À palavra “fim” se acrescenta um ano, como uma declaração de princípios ou uma inscrição raivosa na tira de película destinada a um futuro incerto: “1972”. A nomeação do ano é um lembrete aos arqueólogos do futuro: aqui, neste país, no auge do período mais violento da última ditadura civil-militar, um artista livre só poderia mesmo fazer um filme assim: mudo, em preto e branco, povoado de imagens violentas e de seres prostrados, de olhares cansados e de caminhadas rumo a lugar nenhum, de rostos estilhaçados pelo enquadramento e de ritmo atravancado, de frases a meio caminho entre o poema lírico e o ensaio sociológico e de corpos nus, porém incapacitados para o amor.
Um tempo em que, enquanto o imortal Cacá Diegues alertava nos Cahiers sobre a ameaça de um “suicídio cultural e político”, de “um cinema irresponsável e perigoso”, o entendido João Silvério Trevisan berrava “como um louco no hospício”, e saudava “a podridão daqueles que estão abrindo mão de tudo”. Imagens é uma ode a esse cinema resolutamente suicida, destinado à clandestinidade ou à lata de lixo da história. A esse cinema que, com sorte, permaneceria esquecido por décadas no porão de um arquivo europeu, sem que se diga nunca como é que foi parar lá, nem por que não retornou até que fosse tarde demais para acusar o saque. Imagens é menos uma arma valiosa voltada aos lutadores de seu presente, e mais uma carta lírica e furiosa, prenhe de urgência, mas destinada aos sobreviventes do futuro. “Fita com o olhar o ocidente do futuro no passado”, diz a frase inscrita sobre um par de seios. Nesta fita, carcomida pela época de sua realização, sobrevive o alerta: o ocaso do futuro já estava aqui. Mas sobressalta ainda o imperativo do poema: olha.
Referências:
DIEGUES, Carlos. AUMONT, J.; DE GREGORIO, E.; PIERRE, S. Entretien avec Carlos Diegues. Cahiers du cinéma, nº 225, p. 50, nov.-déc. 1970.
ROCHA, Glauber. Citado em FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Azougue, 2016, p. 298.
TREVISAN, João Silvério. Citado em FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Azougue, 2016, p. 107.
realização e argumento LUIZ ROSEMBERG FILHO produtora SÔNIA ANDRADE imagem AMAURY LEENHARDT som CELSO MUNIZ montadora SUELY RICHERS com SÔNIA ANDRADE, ALVIM BARBOSA, ECHIO REIS, FABÍOLA FRACAROLI, FERNANDO DE AMARAL PICCININI, GRÉCIA VANICORI