NOVOCINE

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MAPA 2022. PT. 10 min


um filme de Lourenço Crespo

Um casal observa dois amigos a caminho de uma festa.




NOVOCINE: Estes são dois filmes que partem de um ponto de vista muito semelhante mas são formas diferentes de pensar o cinema. O Granary Squares está mais concentrado na plasticidade do filme e o Mapa menos mas os dois têm o som como parte fulcral. O Gonçalo entretanto sugeriu que o filme dele pudesse ser exibido no site com a opção de x2 speed no vimeo para que as pessoas o possam ver mais rápido, se assim o quiserem. Isto porque o Granary é um filme que pode ser deixado a dar, ires à casa de banho, voltares, pensares.

Gonçalo Lamas: Eu até acho que, se chegarmos um dia a um mundo em que possamos pôr filmes na parede, eu acho que este é um filme para se pôr na parede, tipo aqueles quadros de paisagens que tens em casa da avó. Para mim, isto seria o ideal para o filme. Aliás, mesmo quando o estava a fazer, o meu processo esteve muito mais próximo da pintura do que do cinema. O maior desafio técnico que eu tive foi mesmo esticar a imagem. Em 2016, chegava a um ponto em que, no After Effects, o scale que eu estava a fazer era tão grande que eu tinha de render porções pequenas porque senão, o processador não conseguia memorizar o anchor point. À medida que eu chegava mais à frente no filme, mais curtos tinham de ser os renders para eu depois voltar a uma imagem parada. E portanto, foi quase um processo de animação a certa altura - a pintar cada momento.

NC: Então foste fazendo mini-sequências do filme?

Gonçalo: Exactamente. No início menos, porque o scale ainda estava entre os 0 e os 3000 e depois chegou a uma parte em que o número era tão grande que tu tinhas literalmente um problema de RAM para manter aquilo num processo animado e começava a dar erro. Foi um bocado à sorte… Ou seja, eu fazia o render até ao minuto 40’ e depois tinha de render os minutos 42, 43… Voltar a esse frame. Obviamente que nos últimos 10 minutos não interessa muito onde se cola mas eu tinha sempre o plano original à beira, portanto eu sabia onde é que ia calhar com o anchor point.

NC: A nossa ideia é mostrar primeiro o Mapa e depois o Granary. Achamos que faz mais sentido esta ordem. O do Lourenço aproxima-se e o do Gonçalo continua o movimento…

NC: (para Lourenço) O Gonçalo viu o teu filme 3 vezes na última hora.

Gonçalo: Tenho a certeza que não fizeste isso com o meu filme.

Lourenço Crespo: O teu filme, eu vi-o ontem uma vez!

Gonçalo: Sê lá sincero, não o viste todo!

Lourenço: Houve uma parte em que eu minimizei a janela, sim. Mas vi tudo. Mas não foi fácil. Não foi fácil porque é só mesmo olhar para a janela.

Gonçalo: Eu acho mesmo que é um filme-paisagem. Na sala de cinema, tu podes abraçar aquilo como uma hora meio alucinógena e o filme ganha outras qualidades. O som também é misturado de uma forma em que começa no centro e acaba nas 5 colunas, é uma experiência diferente. Mas, em geral, o filme é um objecto que tu podes deixar acontecer enquanto fazes a tua vida. Obviamente, é difícil comunicar isso: olha, é para ver o filme mas não precisam necessariamente de o ver. Agora, eu acho que essa é a única maneira de ver o filme fora da sala de cinema. Eu acho que a semelhança mais óbvia entre os nossos filmes é que o quadro, mesmo ao nível óptico, é praticamente o mesmo. Devemos ter uma óptica muito semelhante.

NC: Quais são as dioptrias de cada um?

Gonçalo: Já não me lembro mas acho que era uma lente de 40 ou 30 e tal milímetros.

NC: A minha pergunta era se vocês vêem mal ao longe.

Gonçalo: Eu tenho hipermetropia. Portanto, eu vejo mal ao perto.

NC: O Lourenço vê mal ao longe. São diferentes nesse aspecto. Por isso é que talvez tu uses o zoom e o Lourenço se mantenha longe.

Lourenço: E a minha está muito zoomada… Está no zoom máximo da câmara.

Gonçalo: De qualquer forma, uma coisa que é evidente é que o quadro, em termos de escala, é parecido. E são filmes sem horizonte, que é uma coisa na qual eu só pensei depois de fazer o meu, como algo que não é muito comum no cinema. É algo que eu acho curioso.

NC: É muito engraçado porque em ambos os filmes, nunca se vê o céu.

Gonçalo: É uma perspectiva octogonal… E eu lembro-me que nem pensei nisso quando estava a fazer o meu. O mais próximo do horizonte do meu é aquele canal que passa em cima. Acho que muda muito aquilo que tu esperas do plano…

NC: Uma coisa interessante é que ambos levam ao limite, o Gonçalo mais na montagem e o Lourenço mais na filmagem, até onde é que as câmaras conseguem espiar ou o que conseguem apanhar da vida humana… E com isto, faço a ponte para uma coisa que me deixou curioso na sinopse do Granary Squares que é uma “privately managed but privately facing square”. Queres falar um pouco sobre isto?

Gonçalo: É algo em que eu pensei bastante sobre de que maneira deveria estar explicitamente presente no filme. Depois, dado o caminho muito plástico que eu segui com o filme, acabei por deixar essa parte pouco explícita. Mas quem conhecer a praça, ou quem quiser conhecer a praça, consegue perceber um bocadinho desta questão porque ela faz parte de todo um jogo estético que acontece muito em Londres, mas não só, que são estes espaços, como uma praça pública, que têm uma gestão privada muito presente que envolve câmaras de vigilância enormes por todo o lado e por vezes também uma equipa de segurança bem identificada e toda uma monitorização muito activa.

NC: Mas o que é que pertence a quem?

Gonçalo: No caso de King’s Cross, que deve ser o caso mais central da cidade, estamos a falar de um raio de 2 km2, talvez um pouco menos, que foram completamente renovados, o que significa que deixaram de haver tantos armazéns e tantos cantos para dealers, etc… Aquela zona foi toda uprooted e construíram-se várias coisas, entre as quais, a extensão da estação de King’s Cross e agora vai ser construída a sede da Google, que não está no plano, está mesmo para lá do plano, à esquerda. E depois há o edifício da escola em que eu estava (Central Saint Martins) que, por si, recupera uma estrutura muito antiga, que era o maior depósito de cereais do Reino Unido, e por isso é que a praça se chama Granary Squares. A empresa que desenvolveu isto chama-se Argent, ou seja dinheiro em francês. E a empresa também estava sediada um andar acima do andar em que eu filmei. Eu filmei de uma janela da biblioteca da Saint Martins e eles estavam no andar de cinema. Portanto, existem todas estas praças e pracetas, que têm obviamente muito charme e são muito atractivas com este tipo de fontes ou outros tipos de intervenções públicas, combinados com elementos de desenho urbanístico ou de arquitectura urbanística que são mais nefastos. Por exemplo, aqueles bancos que se vêem no filme, muito longos, são horríveis para te deitares…

NC: Hostile architecture.

Gonçalo: Exacto. E isso impede que as pessoas possam cochilar ali… Tudo isto acontece, ainda assim, num território de inclusão, ou seja, não é aquela estratégia mais comum de colocar picos à frente de uma janela ou coisas assim. São formas mais, digamos, refinadas, de criar este tipo de hostilidade. Mas acima de tudo, para voltar à base da questão, aquele espaço parece uma praça pública mas nunca poderia cumprir a função de uma praça pública. Ou seja, o filme foi feito sem permissão alguma e de outra forma, provavelmente não existiria. Se tu quiseres organizar um protesto ali, não podes. A empresa tem todo o direito de te tirar ali.

NC: É um bocado o oposto da zona onde o Lourenço filma, o Martim Moniz, que acaba por ser muito apropriada e habitada pelas pessoas que vivem na cidade.

Lourenço: Mas esta praça, Granary Square, isto é um sítio de passagem, certo?

Gonçalo: De passagem e de todo outro tipo de coisas… Naquela altura, ainda havia muita construção, dá para ver que há pessoas a trabalhar em obras ali à volta. Agora, à direita existe um centro comercial, à esquerda existe uma espécie de fancy pub e portanto no verão aquilo está cheio de miúdos a brincar nas fontes, portanto, aquele espaço desempenha a função de uma praça pública. As pessoas que vivem nas imediações, a 500 metros dali, vão lá com os miúdos durante o dia, assim como os novos yuppies que vivem nos novos apartamentos à direita, vão também lá com os cães. A nível social, o espaço também cruza realidades muitos díspares. Em relação à janela de onde filmei, é uma das janelas do topo da biblioteca, é uma zona onde normalmente as pessoas estão a ler ou escrever em silêncio, mas filmei de lá porque foi uma tentativa de ver à mesma altura das câmaras de vigilância que estão instaladas ali à volta. Já para falar de que a ideia de filmar em 4K em 2016 não era assim tão alastrada… Era mais ou menos o standard para o máximo de resolução possível numa câmara digital e portanto também tinha a ver um bocado com isso. Tentar ir à exaustão com o 4K.

NC: No Mapa sente-se um bocadinho de estabilização, pelo plano ser tão aproximado, qualquer precipitação do vento se sente com bastante força.

Lourenço: Todos os planos têm warp stabilizer.

Gonçalo: Dá para sentir isso nos cantos dos enquadramentos.

Lourenço: E estava vento nesse dia… Há dois planos em que isso se sente mesmo muito.

NC: Falaste da ideia de uma câmara de vigilância, Gonçalo, e pelo off, os dois filmes têm uma relação muito diferente com o ponto de vista de quem é que está por detrás da câmara. Enquanto no Granary, abstraindo-nos da ideia de que isto foi filmado por alguém, parece que existe uma cabeça digital por detrás do filme, quase como se um robot decidisse o que é importante para se olhar naquela praça. No Mapa, os narradores são assumidos embora não nos apercebamos que tipo de vozes são estas - se são pessoas ou outras entidades extraterrestres que comentam o que se está a passar. Um é muito frio e digital, quase robótico, semelhante ao tom da praça, especialmente no Inverno. E o outro mais caloroso, filmado durante o Verão, com o intuito de querer fofocar e saber o que é que os outros andam a fazer pela cidade.

Gonçalo: Eu diria que o meu filme é quase um filme sem extra-diegese. Tenta, pelo menos, dizer que o que estás a ver, é o que estás a ouvir.

NC: Podias ter assumido mais o som da biblioteca por detrás da câmara, optaste por não o fazer.

Gonçalo: Eu só queria que o som se situasse no centro da praça, que deambulasse no centro da praça e foi assim que o som foi gravado, apesar de termos feito várias gravações.

NC: Então não gravaste o som ao mesmo tempo da filmagem, o som é todo construído em pós-produção.

Gonçalo: Havia só duas coisas que eu queria fazer. Uma era uma ideia de definição sonora que viajasse em direcção contrária à da imagem - o filme começa quase como se estivéssemos debaixo de água, tem um low pass muito potente, e depois acaba com a resolução total, e à parte disso e da presença da água, queria sincronias e assincronias. No caso do Lourenço, eu gostava de saber em que momento é que surgiu aquela especulação toda. Em que momento escreveste?

Lourenço: Portanto, eu vi primeiro as ruas e pensei: vou fazer este filme. Dois amigos a caminho de uma festa. E depois, quando os mandei para lá, estava a dirigi-los pelo telemóvel. Eu, no miradouro da Senhora do Monte, e eles lá embaixo. Eu sabia apenas as acções que queria que eles fizessem. No segundo plano, há aquela coisa das direcções, eu disse-lhes só “venham daqui ali e a dada altura, têm uma dúvida se hão-de olhar para ali ou para aqui.” Eles não tinham falas que tinham de decorar. Se tivessem, depois, nunca mais sáiamos dali. Não dava. Eles no fim do filme, e aquilo demorou 4 horas a filmar, já estavam fartos de estar a fazer aquilo. Eles não são actores, são dois amigos meus, não podia estar a exigir que eles decorassem o texto… As únicas indicações que eles tinham eram essas - são as direcções, um deles a mostrar o telemóvel ao outro e eu sabia que ele lhe ia mostrar uma miúda…

Gonçalo: Stacy…!

Lourenço: Stacy! (risos) É Stacy, é… E aquele momento final dele a apontar. Depois, na montagem eu apercebi-me que no final não o vemos a apontar. Percebes mais ou menos mas não era bem o que eu queria que se visse… Eu imaginei outra coisa. Aquilo está vertical, na linha dele.

NC: Eu sei que já falámos disto. No caso do Lourenço, só no final é que é revelado que as personagens estão conscientes da câmara e no caso do Gonçalo pelo zoom-in, cria uma espécie de desconforto no espectador que faz com que seja impossível não pensar nas propriedades da câmara… É engraçado como os dois filmes são sobre o espectador a ver, que é uma coisa que acontece quando estamos num ponto de vista alto, sentimos uma espécie de soberania sobre as formigas que estão lá em baixo.

Lourenço: O meu filme é muito voyeur. A primeira fala do meu filme é: olha. É pedir para olhares, para veres…

Gonçalo: Eu adoro essa ideia de tentar especular a partir do que se vê num espaço partilhado. Sempre adorei isso e vou sempre achar fascinante. No meu caso, isto foi feito completamente às cegas. Eu não vi o plano até chegar à sala de montagem. A rodagem é a duração do filme, portanto, só depois é que eu passei três meses a tentar extrair lógicas que eu queria que fossem coerentes ou não dentro das pessoas que entravam ou saíam naquela hora que eu tinha gravado. Não houve mais takes. Eu queria que fosse um único take que chegasse ao fim da capacidade do disco e que aquilo fosse o meu material para depois trabalhar. Há amigos meus que passam na praça, um conjunto de coisas que aleatoriamente apareceram mas não foi nada planeado.

NC: Isso dá outra dimensão do voyeurismo. Do género: deixa lá ver o que é que eu tenho aqui, o que é que eu apanhei

Gonçalo: Sim, eu estava ao pé da câmara mas não estava a analisar o que se estava a passar. Aliás, como o filme é filmado através de uma janela, o espectador mais astuto poderá a certa altura ver-me no filme. Nos primeiros dois minutos, eu apareço no reflexo. Eu e o cabo dos meus fones.

NC: Querem falar sobre o que estão a preparar agora? Estão a escrever filmes?

Lourenço: Eu estou a escrever. A tentar escrever mais coisas. A escrever uma curta e a fazer música. Mas sim, estou sempre a escrever qualquer coisa. E há-de ser assim… algo muito parecido com o Mapa (risos). Há umas semelhanças entre as personagens… são assim estranhas, frias.

Gonçalo: Eu não achei as personagens frias.

Lourenço: Eles causam alguma aversão a muita gente. No fim, ela diz: têm os dois uma energia muito estranha. O pessoal riu-se bué quando estreou no indielisboa e o Éme, um amigo meu, disse “claro que sim porque isso é um grande alívio quando ela diz isso” porque é tipo “ah ok, eles são esquisitos, não sou o único a achar isto, pelo menos esta personagem é normal”. Pronto, muito do que eu achava que era uma piada no script, quando eles liam, eles não liam com a entoação que eu estava à espera e houve cenas que achei sérias que eles faziam ao contrário, como se fosse uma piada. Eu digo isto, que eles são estranhos, porque isso às vezes, são as expectativas do que eu achava que tinha graça no filme e elas não passam e são outras.

NC: E tu, Gonçalo?

Gonçalo: Eu estou neste programa de estudos/produção numa cidade fria em França. Fiz um filme no ano passado e estou agora a tentar ver quem é que quer mostrar o filme, que é uma adaptação, uma cena sobre feelings… E este ano, estou a trabalhar um bocadinho mais com a ideia de vermos imagens ou das imagens que nós temos de ver para vermos as imagens que queremos ver. Um bocadinho a faustian bargain do digital advertising e tudo isso. Vai ser uma instalação para dois ecrás, como se fosse uma esquina onde dois gajos se encontram e mijam.




realização, argumento e montagem LOURENÇO CRESPO com MIGUEL ABRAS, JOÃO DÓRIA e FRANCISCA SALENA som FRANCISCO CORREIA ass. de realização HUGO CORTEZ FERNANDES mistura de som TOMÉ PALMEIRIM correcção de cor e genéricos AFONSO MOTA