NOVOCINE

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MONANGAMBEEE 1968, ALG, 16 min


um filme de Sarah Maldoror

Uma mulher visita o marido na prisão. Ao partir, faz-lhe uma promessa, mas o guarda que os vigia revela os seus segredos ao director da prisão. Por causa de um mal-entendido de linguagem, as personagens são submetidas a interrogações brutais e lutarão pelas suas vidas. Intitulado “Monangambee”, um grito angolano que significa “morte branca”, o filme ilustra o medo sentido pelas comunidades que Maldoror representa nesta curta-metragem. A cópia exibida é uma digitalização, realizada em 2017 pelo Instituto Arsenal, de Berlim, a partir da única cópia em película então existente do filme.



Texto por Joana Ascensão

“Depois da luta anticolonial, filmar uma senzala de escravos já não é filmar a senzala em si mesma, mas sim captar a música das cadeias, criar uma sinfonia de correntes para representar a dor, algo de mais sublime e poético.”
Sarah Maldoror *

Monangambeee (1968) é o filme inaugural de Sarah Maldoror (1929-2020), cineasta que que assim inicia um percurso singularíssimo no cinema, afirmando-se como a primeira mulher negra a realizar uma obra de ficção sobre as lutas da libertação em África, neste caso em Angola. Por outro lado, Monangambeee é muito provavelmente a obra mais livre de Maldoror, pois tem a força e a radicalidade de muitos primeiros filmes, em que o trabalho sobre a matéria e as formas cinematográficas assume um carácter verdadeiramente exploratório. Nesta curta-metragem com cerca de quinze minutos de duração, tal liberdade surge desde logo conotada com o trabalho de improvisação livre levado a cabo pelo Art Ensemble of Chicago que, combinando jazz com a música de vanguarda, se espelha na extraordinária banda sonora que, a convite da realizadora, o grupo compôs para acompanhar o filme. Nos seus exacerbados contrastes, a música exponencia a liberdade de outras vertentes do filme, afastando Monangambeee dos cânones do cinema militante, o que lhe valeu algumas críticas.

Partindo de um conto escrito alguns anos antes por José Luandino Vieira (O Fato Completo de Lucas Matesso, 1962), Monangambeee adapta-o de forma muito livre, ao mesmo tempo que revela o excelente trabalho desenvolvido por Maldoror com um conjunto de actores maioritariamente amadores. Uma divergência de ordem linguística na interpretação do termo “completo” estará na origem da percepção errada de uma possível conspiração, e da posterior tortura que será infligida na prisão ao protagonista do filme pela polícia política portuguesa. Significando uma refeição característica dos musseques angolanos, é entendida pelos carcereiros como um “fato completo”, peça de vestuário em que estaria escondido um bilhete secreto, o que conduz a mirabolantes interpretações e a uma exacerbação da violência que acompanha um interrogatório sob tortura.

Num filme que acentua a distância entre a perspectiva dos colonizadores e dos colonizados, a câmara de Maldoror acompanha sempre de muito perto o corpo de Mateus “Lucas Matesso” (representado admiravelmente por Carlos Pestana) e dos restantes prisioneiros através de imagens dominadas por acentuados contrastes claro-escuro, que encontram eco na simbólica banda sonora. É assim ao som de jazz que se desenvolve uma sequência magnificamente coreografada, em que o protagonista se confronta com um chicote invisível, atirando-se contra a parede da masmorra e arrastando o corpo pelo chão, como para escapar às vergastadas de um torturador, que não vemos, mas que rasgarão violentamente o seu corpo. Momento único em que a violência extrema dos acontecimentos representados encontra expressão num original trabalho de composição que, sem negligenciar o rigor da representação, aponta para a profunda teatralidade de uma obra muito ligada às artes dramáticas e a uma poesia de inspiração surrealista.

É importante lembrar que Monangambeee é uma primeira obra realizada por uma cineasta que em 1956 adoptou o pseudónimo Maldoror em homenagem à poesia de Lautréamont, cofundando no mesmo ano Les Griots, o primeiro grupo de “teatro negro” parisiense, cuja peça de estreia foi Les Nègres, de Jean Genet. Face a Monangambeee pensamos em Genet e no seu único filme, também ele assente em contrastes visuais exacerbados, mas também na extrema proximidade de Maldoror com tantos outros escritores, como Mário Pinto de Andrade, o seu companheiro e fundador do MPLA, que a conduziu a Angola e à obra de Luandino, ou Aimé Césaire, cuja poesia será determinante na sua obra cinematográfica.

Por seu lado, as imagens fotográficas presentes no genérico final de Monangambeee, em que vemos guerrilheiros e guerrilheiras que carregam armas às costas, são da autoria da jornalista e fotógrafa italiana Augusta Conchiglia. Se, face à complicada situação política, Monangambeee teve de ser filmado na Argélia, contando para tal com o apoio dos movimentos de libertação, estas fotografias da guerra foram realizadas clandestinamente em 1968 em Angola. Imagens que revelam a importância do registo documental de uma luta anticolonial em curso e que explicitam como Monangambeee participa de um movimento transnacional em que as várias artes têm um papel essencial.

Sambizanga (1973), a longa-metragem seguinte de Maldoror, partirá de uma segunda obra literária de Luandino Vieira, mas também de uma música popular angolana conotada com os movimentos de libertação, cujo título corresponde precisamente ao de Monangambeee. Prosseguindo na via de um cinema político, em que procurava desfazer configurações culturais cristalizadas em prol de uma liberdade de inspiração surrealista, é através do cinema praticado como meio de investigação poética que Sarah Maldoror levará a cabo um contínuo trabalho de resistência e de afirmação cultural. É essa a poesia que nos revela Monangambeee.

* Sarah Maldoror: o cinema da noite grávida de punhais. Entrevista de Raquel Schefer a Sarah Maldoror, realizada em 2013 e publicada in “Angola, O Nascimento de Uma Nação (Vol III) – O Cinema da Independência”, coord. Maria do Carmo Piçarra e Jorge António, Guerra e Paz, Lisboa, 2015.




realização SARAH MALDOROR argumento SARAH MALDOROR, MARIO DE ANDRADE, SERGE MICHEL conto original JOSÉ LUANDINO VIEIRA com CARLOS PESTANA, NOUREDDINE DREIS, MOHAMMED ZINET, ATHMANE SABI, ELISA PESTANA música ART ENSEMBLE OF CHICAGO direcção de fotografia ABDELKADER ADEL fotografias AUGUSTA CONCHIGLIA produção DÉPARTAMENT ORIENTATION ET INFORMATION DU FRONT NATIONAL DE LIBÉRATION apoio L’ARMEE NATIONALE POPULAIRE