NOVOCINE

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O QUE NÃO SE VÊ 2020. PT. 23 min


um filme de Paulo Abreu

Documentário construído a partir de imagens de viagens de pesquisa para um filme nos Açores, entre 2015 e 2016, nas ilhas do Pico e Faial. Anos mais tarde, ao voltar ao material captado, o realizador encontra um outro filme. Um filme escondido, em que o poder da Natureza e o Acaso revelam uma narrativa sobre a amizade, o cinema e a influência do imprevisto na criação artística.




De tu a mim
Tu tu ti

Um segredo que guardei
Longe daqui

Uma folha de um diário ou uma carta de amor
São o mesmo muitas vezes

Um estudante longe de casa, fala ao telefone com a mãe. A distância à mãe e a distância aos jardineiros são os dois pesos em tensão que partem da primeira janela deste filme, o primeiro quadro, através da qual ocupamos o nosso olhar. A distância funciona como um fio que nos liga a alguém, uma chamada telefónica, por exemplo, ou o fio invisível que perfura o centro da Terra e me une aos pés de quem estiver do outro lado do espelho.
O som e a imagem são entendidos numa dinâmica de Tu + Eu, elementos que se apresentam independentes, cada qual tomando atenção a uma camada de percepção. Não fosse, pela relação do Marcelo com o som, este o abraço maior e mais quente, o mais íntimo e generoso, oferecendo, dentro do filme, o cuidado e a atenção e, a quem de fora assiste, a natureza das relações que nos vão sendo apresentadas.
No entanto, Eu + Tu, não são não corelacionáveis e não coexistentes. Pelo contrário, é só porque um existe que o outro se vai revelando. Predispomo-nos a ouvir para ser ouvidos, a oferecer para receber, a permanecer em conjunto para irmos construindo o lugar ideal de encontro máximo e de partilha absoluta.
Em Tu. Tu. Tu., a imagem parece orquestrar, como a memória, impressões. Ampliações do que se viu no presente e que agora constroem a nossa relação com o passado ou com o que está distante. Hoje, longe da residência de estudantes e sempre que longe de casa, são as imagens que o filme partilha connosco que nos revelam o fluxo da possível memória, dos pontos chave para a reconstrução dos lugares antes habitados e da relação que se estabelece com eles no presente. Guardamos de um espaço a vista pela janela, as labaredas de uma fogueira ou o perfil dos irmãos.

Com o cinema escrevemos cartas que falam de coisas impossíveis.
O que não se vê.
Filmar o que não se vê.
Filmar para não se ver.
Filmar para mostrar que não se vê.
Filmar para mostrar que se pode ver o que não se vê.

Sobre o Pico, uma dezena de luzes que se revessam ao longo das vinte e quatro horas disponíveis, em sintonia com as curvas de uma estrada, que serve os travellings que se sucedem numa tentativa prolongada de trazer do Pico a mais bela carta.
Para filmar o Pico é necessário sair do Pico, afastar-nos até à distância justa do enquadramento, dito perfeito, esperar o raio de sol, o primeiro ou o último, esperar cinco nuvens no céu.
O Piquinho será o segredo, a meia distância do último nevoeiro.
Para filmar o Pico é preciso ter tempo, um determinado alento. Entender da busca o processo e fazer da viagem o fim.
Num diálogo que está continuamente em tensão com a distância, sempre com a atenção sobre o que resulta da mesma. A medida de um plano, da sua escala à sua duração, é um peso a acrescentar a uma balança que ora pende para o entendimento transparente do filme, ora pende para a subtileza do que nele se esconde.
A distância ajuda ao discernimento, ao que não se vê quando se está dentro. Descobrir o Cinema também é uma forma de descobrir ferramentas que permitem leituras e entendimentos sobre o que consegue ver, o que pode existir, mas que tem de ser percecionado à distância para ser desvendado e (re)conhecido.
O que não se vê traduz um reencontro com imagens que nos levam até a um amigo que partiu. Ir ao encontro da memória do que não existe, que está em off, num plano transcendente ao que podemos vivenciar e que por isso não se vê e pertence ao campo das emoções e dos sentimentos. O cinema é grato às matérias do sensível, são o seu ingrediente de ouro, a pepita escondida no caudal de um rio.

Como a memória, também o desejo é algo que nos acompanha em off. Como foras-de-campo que nos conduzem por entre os quadros que vamos habitando e revelando – onde se enquadra a nossa vida.
Tanto Tu. Tu. Tu., como O que não se vê são filmes que se oferecem a alguém e que se constroem sobre a possibilidade de se estabelecer uma nova ligação e de partilhar a intimidade com quem está longe ou ausente. O que se traz para contar e partilhar de longe para o calor do encontro.
O Marcelo sabe que quem escolhemos trazer connosco são as pessoas que nos possibilitam olhar para nós e compreender que viagem queremos fazer, que janelas habitar e que câmara escolher para levar connosco. Dessa forma a imagem que temos do mundo vai alterando as suas formas e a sua luz.

As paisagens em altura, que se oferecem com uma vista desafogada, desde cedo me convenceram que dali se consegue assistir ao mundo todo.
Também questiono, no imediato, a veracidade dessa teoria por ser impossível ver o que fica para trás de mim.
O que observamos pela janela compõe o enquadramento que nos acorda, que nos impacienta ou que nos acompanha na espera, antes do sono ou de uma chamada telefónica.
O mundo todo concentrado numa paisagem é até uma certa altura ou sempre, a medida de uma inocência que se vai abrindo e que nos vai possibilitando olhar e ver e, principalmente, entender como o fazer.
O difícil é encontrar o plano certo, as palavras certas para partilhar o imensurável, para articular as emoções que nos aproximam, mas que também nos atiram para muito longe, na esperança que na volta se possa trazer para casa algo mais, um gesto que constrói - o amor.

Um orgulho em ti ti ti.

Laura Gama Martins
março de 2024





realização PAULO ABREU montagem LEE FUZETA super 8 PAULO ABREU mistura de som SÉRGIO GREGÓRIO produtores JOÃO DA PONTE, FILIPA REIS produtora associada PATRÍCIA FARIA