NOVOCINE

Apresentado pela primeira vez na Bienal de Veneza, em 1976, o filme intitulado Revolução, de 1975, faz parte desse núcleo de obras de curta-metragem. Filmado nas ruas de Lisboa, no pós 25 de Abril, com uma câmara Super 8, documenta os cartazes de propaganda política, os grafitis e os murais de ideologia revolucionária inscritos nas paredes da cidade.
Apresentado pela primeira vez na Bienal de Veneza, em 1976, o filme intitulado Revolução, de 1975, faz parte desse núcleo de obras de curta-metragem. Filmado nas ruas de Lisboa, no pós 25 de Abril, com uma câmara Super 8, documenta os cartazes de propaganda política, os grafitis e os murais de ideologia revolucionária inscritos nas paredes da cidade.
REVOLUÇÃO um filme de ANA HATHERLY. 1975, PT, 11 min


Texto por Fátima Rolo Duarte

«Nós estamos sempre a contar coisas uns aos outros»,
Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig 1 - o encontro inesperado do diverso

Ana

A velocidade de cada imagem cosida com a velocidade de cada imagem num piscar de olhos. Para que se saiba, a memória permanece afinal intacta. As paredes viram-se para fora, saem da escuridão, vibram. O som acompanha as coisas, sinais, fragmentos aparentemente desordenados. Ana Hatherly é a realizadora-tecedeira deste monumento ao 25 de Abril imediato. Vivo, louco e louvado pela montagem vertiginosa, «mosaicos incoativos» para usar uma feliz expressão de Marie-José Mondzain. E é aqui que nos encontramos, as imagens encaixam e ressuscitam na sua fragilidade, e assim mesmo perturbam o olhar e não seria demasiado afirmar que, agora, incomodam por via do vivido e vívido. E delicadas eram as que chamaremos «attrapées» de Hatherly. No corropio de sons, as «attrapées» desfilam até ao pano preto. Não se saberá se é luto, não existe a preocupação de o marcar. De tanto olhar aquele momento, a esta distância, é possível, para quem o desejar, reviver as alegrias, respirar tudo o que Hatherly mostra ao ritmo de todos os corações. Não se vislumbra cinema, mas uma gigante história de amor, «coisas» que a realizadora nos conta ou dá. Tanto faz. É possível adivinhar-lhe a vida, a morte e de novo a vida. Um ciclo de felicidade para os que aqui chegaram e a miséria de alma para os que fugiram de Portugal. Assim se explica como ontem mais hoje têm como resultado a palavra Sempre.

António

Há quem lhe chame “documentário puro” para avaliar do valor do diamante. Quanto mais incolor, maior a claridade do que é raro e precioso. Haverá quem imagine ser possível olhar para um documentário, este, do realizador António Campos e defender a «etnografia de salvaguarda» porque na medida em «que tudo passa» a vontade de não perder de vista o tempo fugitivo é o motor. Será este o caminho? Sim. Um colectivo onde nada nem ninguém se dissolve porque as marcas de Campos atravessam a obra. Enquanto a vida vai e vem, António Campos foi Jean Rouch ou vice-versa, a verdade superior em imagens extraordinárias. Repare-se como a palavra revolução se integra no quotidiano português; foices e martelos tranquilamente encostados aos símbolos mais ou menos ingénuos, muitíssimo militantes. As paredes sentinelas, « a célula de cinema do Partido Comunista Português » que assina o filme de Campos e a escolha nada casual da intensa «Sinfonia para Orquestra» de Fernando Lopes-Graça colocam-nos perante um dos momentos mais interessantes do cinema documental assente na retórica etnográfica. Assim, «Paredes Pintadas da Revolução Portuguesa, 1976» é simultaneamente um panfleto do passado como a antevisão do futuro onde estamos hoje: nas palavras do poeta Manuel Gusmão: «Contra todas as evidências em contrário, a alegria». É esta a geografia do espaço onde Ana se encontra com António e o espectador com o olhar, o visível e sobretudo o invisível. A alegria? Sempre!

Éramos todos vivos. As paredes e os muros falavam sobre as novidades. Da maior importância? Saber tudo sobre tudo. Da rua para casa, do cinema ao teatro, livros, jornais. Em casa pintei uma pequena foice e martelo cruzados no interruptor da luz do meu quarto caótico até ao Alentejo das estradas infinitas, da bicicleta por entre os pessegueiros e das letras escritas até formarem os nomes de quem pegava no lápis. Muito arroz de tomate comi eu. Muita água da bilha, muito calor. Vivia o excesso sem perceber nada do futuro. Muito filme no cinema Universal ou no quarteto onde aproveitava o intervalo para entrar sem pagar bilhete, em pleno acto de desobediência. Ou não fosse esta a «profissão» de qualquer jovem. Hoje, apenas repito que éramos todos vivos porque é esta a verdade que me sobrou de tudo o que sucedeu a partir daquela data: 25 de Abril de 1974? Sempre!


Ana Hatherly, 1929-2015, realizadora, professora, poeta, artista plástica. Obra vasta, experimental sendo a palavra uma das suas matérias primeiras.

António Campos, 1922-1999, realizador, pioneiro do cinema documental português. Um dos fundadores do movimento do Novo Cinema Português. Obra independente, trajecto solitário dedicado à antropologia visual cinematográfica.

Manuel Gusmão, 1945-2023, poeta e ensaísta, professor catedrático. Militante do Partido Comunista Português


Cópia digitalizada pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Medida integrada no programa Next Generation EU.




realização, imagem e montagem ANA HATHERLY som ALEXANDRE GONÇALVES
︎ PAREDES PINTADAS DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA de António Campos    REVOLUÇÃO de Ana Hatherly ︎ 22 ABRIL - 11 MAIO ︎ PAREDES PINTADAS DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA de António Campos    REVOLUÇÃO de Ana Hatherly ︎ 22 ABRIL - 11 MAIO ︎ PAREDES PINTADAS DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA de António Campos    REVOLUÇÃO de Ana Hatherly ︎ 22 ABRIL - 11 MAIO