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NYO VWETA NAFTA 2017, MOZ, 22 min
um filme de Ico Costa
Inhambane. Moçambique. King-Best. Samsung Galaxy. Versace. Pitas. Galo branco. Não há palitos na Noruega. Coqueiros. Malambes. Superfrutos. Vitamina C. Passiflorina. Ácido alfa-linolénico. SMS em chinês. Megabytes. Hotel Cardoso. Café é vício de branco. Ngadzango. Minha mulher. Nafta.
Novocine: “Nyo Vweta Nafta" abre com um homem que caminha pelas ruas de um mercado à procura de uma rapariga chamada Nafta, mas a câmara acaba por o perder de vista e apanha uma boleia a caminho de outra história. Como é que sentes que o estilo visual do filme, deambulante e livre, se conjuga com a história que contas?
Ico Costa: Eu fui para Moçambique para fazer uma curta-metragem sem que soubesse qual. Não tinha qualquer ideia, muito menos um guião. Ao mesmo tempo queria muito encontrar uma grande amiga que tinha conhecido em 2010 quando vivi em Moçambique e com quem tinha perdido o contacto. De alguma forma quis incorporar isso no filme, pois a procura de histórias para filmar coincidiu com a procura da Nafta. Todo o filme é meio que improvisado, ideias escritas num papel umas semanas antes de começar a filmar. Acho que o estilo visual do filme acompanha esse método de produção.
NC: No plano sequência que acompanha o casal a andar de mota, ouvimos o rapaz que promete à namorada comprar-lhe uma série de bens que enuncia, quase em lista, uma vasta quantidade de marcas. A cena que se segue, onde três rapazes conversam, e um deles explica a sua ideia de riqueza do poder de compra do seu irmão mais velho, e outras marcas conhecidas são enunciadas: Nike, Adidas, Reebok, Canon, entre outras. Como observas esta relação entre o mercado capitalista ocidental e a sua presença abundante em torno das personagens?
IC: A maior parte dos diálogos do filme foram inspirados em conversas ouvidas na rua ou conversas com pessoas que eu tinha acabado de conhecer. Espero não estar muito errado no que vou dizer, mas sinto que foi na década de 2010 que a posse de artigos de marca começou a formar um certo ideal de prosperidade para a sociedade moçambicana, como teria acontecido 20 ou 30 anos antes em Portugal. Essa é a altura em que a indústria chinesa e as empresas de importação de artigos chineses se instauram em África, resultando isso na inundação de roupas de contrafação das marcas norte-americanas e europeias. É também a altura em que começam a surgir os primeiros smartphones. Essas e outras conversas surgiram, no fundo, de forma bastante natural.
NC: “Nyo Vweta Nafta" não tem uma tradução directa em língua portuguesa, é um termo de uma língua local de Moçambique chamada Guitonga (língua falada em Inhambane). O título pode ser interpretado como "À procura de Nafta". Como foi trabalhar com actores “não-profissionais” e em que medida é que esta decisão contribuiu para a construção da narrativa que propões?
IC: Trabalhar com actores não-profissionais sempre me pareceu lógico, ainda para mais porque em Inhambane não existem sequer actores profissionais. E eu queria aproveitar o que os rapazes tinham para dizer, segunda a forma deles de falar. Há diálogos escritos, mas outros completamente improvisados, o que acontece bastante nos meus outros filmes feitos em Moçambique. Ter só uma coisa ou outra não me satisfaz e com o tempo fui aprendendo que os actores não-profissionais, ao lhes dar a confiança necessária, conseguem sempre dizer coisas mais interessantes do que eu poderia imaginar.
NC: "Nyo Vweta Nafta" marca uma mudança radical em relação aos teus filmes anteriores. O que te levou a escrever este filme e mais concretamente, como começa esta tua ligação com Moçambique?
IC: Sim, houve uma mudança, mas ela surgiu quase por acaso. Eu tinha ganho um pequeno apoio para uma curta de ficção para ser rodada em Portugal, mas parecia-me algo demasiado exigente para o dinheiro que tinha. Ao mesmo tempo tinha ganho o meu primeiro apoio do ICA para a escrita e desenvolvimento, com um projecto de longa a ser filmado em Moçambique. Decidi aproveitar a viagem de répérage para filmar algo, que ainda não sabia o quê. Precisava dessa mudança, quis experimentar fazer algo de forma mais livre, improvisada. Um amigo meu, o Eduardo Williams, tinha feito algo assim no Vietname, e essa forma de trabalhar foi sem dúvida uma enorme inspiração. Ele acabou por me ajudar na montagem e isso sente-se no filme.
NC: Como te posicionas face à relação histórica e cinematográfica entre Portugal e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa?
IC: Não sou historiador de cinema para falar com propriedade deste assunto, mas sinto que não há muitos filmes de cineastas portugueses em Moçambique ou outros países dos PALOP em que as personagens principais sejam pessoas desses países. Não me vem à cabeça um único, sequer. Agora, filmes sobre os brancos em África há bastantes, sobre os problemas dos brancos em África, há bastantes, e continuam a ser feitos em 2023, para enorme surpresa minha. Por muito que às vezes esses filmes tenham um ponto de vista ligeiramente crítico em relação à presença portuguesa em África, não raramente contém também algo de saudosismo e amiúde são realizados por pessoas que nasceram nas ex-colónias e que talvez por isso querem contar as histórias que viveram lá, não sei. Não vejo isso a acontecer com realizadores ingleses, franceses ou espanhóis, é um fenómeno muito português, de uma sociedade que ainda está longe de se ter resolvido com o seu passado colonial. E no fundo acabam por ser filmes com temas e métodos de produção bastante contestáveis. Chega-se a um país pobre com meio milhão de euros, uma equipa de 40 pessoas, para filmar a história de uns brancos que estão deprimidos durante a guerra colonial em Moçambique, Angola ou Guiné, e depois vão-se embora. Os africanos fazem as personagens secundárias e conduzem as carrinhas de produção. É engraçado ou triste como agora têm surgido cada vez mais filmes estrangeiros passados em Lisboa ou Porto (essas colónias dos tempos modernos, que surgem como panos de fundo pitorescos) falados em inglês ou francês. São filmes colonialistas, no fundo. É possível que a minha curta-metragem Libhaketi (filmada em 2010) tenha sido o primeiro filme de sempre falado em guitonga e dos primeiros em Moçambique não falado em português. De lá para cá já se começaram a fazer filmes em changana, ronga, shitsua, ou outras línguas.
NC: Sabemos que estás de volta a Moçambique com um projecto novo, o que nos podes contar sobre ele?
IC: Tenho duas longas-metragens quase terminadas, uma filmada em 2019, outra em 2021, um documentário e uma ficção. São filmes bastante diferentes, mas de alguma forma acabam por serem retratos da sociedade moçambicana, cada um à sua maneira.
Não consigo dizer porque continuo a filmar em Moçambique. Como filmo sempre com relativamente poucos meios, há sempre uma répérage que se torna em rodagem e um projecto que puxa por outro e depois outro e outro. Vou sempre conhecendo pessoas novas que me fascinam, temas que pedem para serem filmados. Sou de Lisboa mas não me imagino a alguma vez filmar lá, por muito que isso possibilitasse rodagens muito mais confortáveis. Filmar em Moçambique é difícil. Além da distância, é um país que vive num constante estado de calamidade, seja pela situação económica, pelas cheias, pela guerra, pelo facto de não ser uma democracia, apesar do Estado português o encarar como tal. Agora há uma nova pandemia: a heroína, que está a destruir a vida dos jovens e das suas famílias. Mas não se fala disso, o governo moçambicano não quer falar disso.
Não sei se vou continuar a filmar lá por muito mais tempo, mas este ano devo ir lá de novo, novamente com uma câmara e sem guião.
realização e argumento ICO COSTA com ZACARIAS COVELA, DOMINGOS MARENGULA, ÉDIO PELEVE, BELTON GUILADE, KING BEST, MIMÓRCIA NHATUMBO, VIVALDO ZANDAMELA, HÉLDER TINGA, BIG JOHN e CARLOS HERNANDEZ direcção de produção e assistência de realização VASCO COSTA assistentes de produção RICARDO CUMBE, HÉLDER TINGA direcção de fotografia HUGO AZEVEDO direcção de som ROLAND PICKL montagem ICO COSTA, EDUARDO WILLIAMS montagem e mistura de som TIAGO MATOS colorista MARCO AMARAL música PUTO ZACA tradução e casting LUÍS DUZENTA apoio a produção em maputo JOÃO RIBEIRO produção em lisboa CELESTE ALVES coordenador de pós-produção MARTA LEMOS produtores executivos JOÃO MATOS, LEONOR NOIVO e ICO COSTA apoios FUNDO DE APOIO AO CINEMA DO INDIELISBOA, UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TÉCNOLOGIAS, UNIVERSIDAD DEL CINE, UN PUMA, KANEMA PRODUÇÕES, JOSÉ MANUEL GRÁCIO, ASSOCIAÇÃO POSITIVO MOÇAMBIQUE
Ico Costa: Eu fui para Moçambique para fazer uma curta-metragem sem que soubesse qual. Não tinha qualquer ideia, muito menos um guião. Ao mesmo tempo queria muito encontrar uma grande amiga que tinha conhecido em 2010 quando vivi em Moçambique e com quem tinha perdido o contacto. De alguma forma quis incorporar isso no filme, pois a procura de histórias para filmar coincidiu com a procura da Nafta. Todo o filme é meio que improvisado, ideias escritas num papel umas semanas antes de começar a filmar. Acho que o estilo visual do filme acompanha esse método de produção.
NC: No plano sequência que acompanha o casal a andar de mota, ouvimos o rapaz que promete à namorada comprar-lhe uma série de bens que enuncia, quase em lista, uma vasta quantidade de marcas. A cena que se segue, onde três rapazes conversam, e um deles explica a sua ideia de riqueza do poder de compra do seu irmão mais velho, e outras marcas conhecidas são enunciadas: Nike, Adidas, Reebok, Canon, entre outras. Como observas esta relação entre o mercado capitalista ocidental e a sua presença abundante em torno das personagens?
IC: A maior parte dos diálogos do filme foram inspirados em conversas ouvidas na rua ou conversas com pessoas que eu tinha acabado de conhecer. Espero não estar muito errado no que vou dizer, mas sinto que foi na década de 2010 que a posse de artigos de marca começou a formar um certo ideal de prosperidade para a sociedade moçambicana, como teria acontecido 20 ou 30 anos antes em Portugal. Essa é a altura em que a indústria chinesa e as empresas de importação de artigos chineses se instauram em África, resultando isso na inundação de roupas de contrafação das marcas norte-americanas e europeias. É também a altura em que começam a surgir os primeiros smartphones. Essas e outras conversas surgiram, no fundo, de forma bastante natural.
NC: “Nyo Vweta Nafta" não tem uma tradução directa em língua portuguesa, é um termo de uma língua local de Moçambique chamada Guitonga (língua falada em Inhambane). O título pode ser interpretado como "À procura de Nafta". Como foi trabalhar com actores “não-profissionais” e em que medida é que esta decisão contribuiu para a construção da narrativa que propões?
IC: Trabalhar com actores não-profissionais sempre me pareceu lógico, ainda para mais porque em Inhambane não existem sequer actores profissionais. E eu queria aproveitar o que os rapazes tinham para dizer, segunda a forma deles de falar. Há diálogos escritos, mas outros completamente improvisados, o que acontece bastante nos meus outros filmes feitos em Moçambique. Ter só uma coisa ou outra não me satisfaz e com o tempo fui aprendendo que os actores não-profissionais, ao lhes dar a confiança necessária, conseguem sempre dizer coisas mais interessantes do que eu poderia imaginar.
NC: "Nyo Vweta Nafta" marca uma mudança radical em relação aos teus filmes anteriores. O que te levou a escrever este filme e mais concretamente, como começa esta tua ligação com Moçambique?
IC: Sim, houve uma mudança, mas ela surgiu quase por acaso. Eu tinha ganho um pequeno apoio para uma curta de ficção para ser rodada em Portugal, mas parecia-me algo demasiado exigente para o dinheiro que tinha. Ao mesmo tempo tinha ganho o meu primeiro apoio do ICA para a escrita e desenvolvimento, com um projecto de longa a ser filmado em Moçambique. Decidi aproveitar a viagem de répérage para filmar algo, que ainda não sabia o quê. Precisava dessa mudança, quis experimentar fazer algo de forma mais livre, improvisada. Um amigo meu, o Eduardo Williams, tinha feito algo assim no Vietname, e essa forma de trabalhar foi sem dúvida uma enorme inspiração. Ele acabou por me ajudar na montagem e isso sente-se no filme.
NC: Como te posicionas face à relação histórica e cinematográfica entre Portugal e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa?
IC: Não sou historiador de cinema para falar com propriedade deste assunto, mas sinto que não há muitos filmes de cineastas portugueses em Moçambique ou outros países dos PALOP em que as personagens principais sejam pessoas desses países. Não me vem à cabeça um único, sequer. Agora, filmes sobre os brancos em África há bastantes, sobre os problemas dos brancos em África, há bastantes, e continuam a ser feitos em 2023, para enorme surpresa minha. Por muito que às vezes esses filmes tenham um ponto de vista ligeiramente crítico em relação à presença portuguesa em África, não raramente contém também algo de saudosismo e amiúde são realizados por pessoas que nasceram nas ex-colónias e que talvez por isso querem contar as histórias que viveram lá, não sei. Não vejo isso a acontecer com realizadores ingleses, franceses ou espanhóis, é um fenómeno muito português, de uma sociedade que ainda está longe de se ter resolvido com o seu passado colonial. E no fundo acabam por ser filmes com temas e métodos de produção bastante contestáveis. Chega-se a um país pobre com meio milhão de euros, uma equipa de 40 pessoas, para filmar a história de uns brancos que estão deprimidos durante a guerra colonial em Moçambique, Angola ou Guiné, e depois vão-se embora. Os africanos fazem as personagens secundárias e conduzem as carrinhas de produção. É engraçado ou triste como agora têm surgido cada vez mais filmes estrangeiros passados em Lisboa ou Porto (essas colónias dos tempos modernos, que surgem como panos de fundo pitorescos) falados em inglês ou francês. São filmes colonialistas, no fundo. É possível que a minha curta-metragem Libhaketi (filmada em 2010) tenha sido o primeiro filme de sempre falado em guitonga e dos primeiros em Moçambique não falado em português. De lá para cá já se começaram a fazer filmes em changana, ronga, shitsua, ou outras línguas.
NC: Sabemos que estás de volta a Moçambique com um projecto novo, o que nos podes contar sobre ele?
IC: Tenho duas longas-metragens quase terminadas, uma filmada em 2019, outra em 2021, um documentário e uma ficção. São filmes bastante diferentes, mas de alguma forma acabam por serem retratos da sociedade moçambicana, cada um à sua maneira.
Não consigo dizer porque continuo a filmar em Moçambique. Como filmo sempre com relativamente poucos meios, há sempre uma répérage que se torna em rodagem e um projecto que puxa por outro e depois outro e outro. Vou sempre conhecendo pessoas novas que me fascinam, temas que pedem para serem filmados. Sou de Lisboa mas não me imagino a alguma vez filmar lá, por muito que isso possibilitasse rodagens muito mais confortáveis. Filmar em Moçambique é difícil. Além da distância, é um país que vive num constante estado de calamidade, seja pela situação económica, pelas cheias, pela guerra, pelo facto de não ser uma democracia, apesar do Estado português o encarar como tal. Agora há uma nova pandemia: a heroína, que está a destruir a vida dos jovens e das suas famílias. Mas não se fala disso, o governo moçambicano não quer falar disso.
Não sei se vou continuar a filmar lá por muito mais tempo, mas este ano devo ir lá de novo, novamente com uma câmara e sem guião.
realização e argumento ICO COSTA com ZACARIAS COVELA, DOMINGOS MARENGULA, ÉDIO PELEVE, BELTON GUILADE, KING BEST, MIMÓRCIA NHATUMBO, VIVALDO ZANDAMELA, HÉLDER TINGA, BIG JOHN e CARLOS HERNANDEZ direcção de produção e assistência de realização VASCO COSTA assistentes de produção RICARDO CUMBE, HÉLDER TINGA direcção de fotografia HUGO AZEVEDO direcção de som ROLAND PICKL montagem ICO COSTA, EDUARDO WILLIAMS montagem e mistura de som TIAGO MATOS colorista MARCO AMARAL música PUTO ZACA tradução e casting LUÍS DUZENTA apoio a produção em maputo JOÃO RIBEIRO produção em lisboa CELESTE ALVES coordenador de pós-produção MARTA LEMOS produtores executivos JOÃO MATOS, LEONOR NOIVO e ICO COSTA apoios FUNDO DE APOIO AO CINEMA DO INDIELISBOA, UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TÉCNOLOGIAS, UNIVERSIDAD DEL CINE, UN PUMA, KANEMA PRODUÇÕES, JOSÉ MANUEL GRÁCIO, ASSOCIAÇÃO POSITIVO MOÇAMBIQUE